Até as verdades bíblicas estão sendo truncadas e destroçadas por cristãos que preferem mitos à verdade de fatos protagonizados e narrados, diariamente, com soberba e sarcasmo pelo disseminador do ódio e sua seita de fanáticos.
O otimismo e a força que move o povo brasileiro sofrido deu origem à máxima “Deus é brasileiro”. Em tempos bolsonaristas, até isso foi retirado a quem só restava a fé e a esperança em dias melhores. Deus se tornou propriedade privada de uma turba de políticos aloprados que se dizem defensores da família e dos bons costumes, mas que carregam a bíblia em uma mão, uma arma de fogo na outra, a perversão nas entranhas, a maledicência na língua e a maldade no coração. O verdadeiro cristão, em seus louvores, reza com o salmista: O Senhor é bom para todos; a sua compaixão alcança todas as suas criaturas.
Acontece que tomaram de assalto, além de altares e púlpitos, também a república e os símbolos nacionais. A propósito do sequestro da Bandeira Nacional e da camisa da Seleção Brasileira, pelo atual governo, me veio a lembrança de quando criança, em Montes Claros, Sertão de Minas Gerais, costumávamos brincar de Rouba Bandeira, na rua onde morava.
A brincadeira era um jogo entre dois times. Cada um tinha a sua bandeira. O objetivo era entrar no território do outro time, roubar a bandeira e trazer para o seu território, sem ser pego pelos jogadores adversários. O jogo tinha muitas regras e nós as respeitávamos. As “bandeiras” eram pedaços de pano ou nossas próprias camisetas. No final, independentemente de quem tivesse vencido a competição, as camisetas eram devolvidas e até os pedaços de pano voltavam para as casas de onde saíram. Ora ganhávamos, ora perdíamos. De vez em quando surgia uma discussão, uma briga, mas não passava disso. Nos entendíamos. Não havia juiz e Deus não era propriedade de time algum, não jogava, nem torcia para nenhum lado.
Esses poucos dias que antecedem o segundo turno das eleições é tão decisivo para o futuro que não consigo deixar de trazer à memória o passado de uma geração que cresceu à sombra dos coturnos militares, viveu as agruras de um país subdesenvolvido que acreditou no progresso como milagre e construiu o futuro às custas do endividamento e do arbítrio. Compreender como nossa história vinha sendo escrita foi um grande desafio para a juventude desse período obscuro. Depois dos anos de chumbo, respiramos o ar da Nova República e ganhamos uma Constituição Cidadã em 1988. E o que era sonho logo se tornou pesadelo: superinflação no governo Sarney, confisco da poupança e escândalos no desgoverno Collor. Nos tornamos adultos imaturos e quase não percebemos que a inocente competição infanto-juvenil, limitada às brincadeiras e ao esporte, havia se transformado em descabida ambição, em meio a uma grave perpetuação dos privilégios de classe. Foi difícil para cada um de nós tomar seu rumo e achar sua nova turma.
Para os que optaram pela subserviência sobraram algumas migalhas em troca da mais indigna condição serviçal: a de capitães do mato.
Em meio a farra e os desmantelos do alagoano, que se autoproclamou “Caçador de Marajás”, os meninos e meninas, de origem proletária, nascidos no final dos anos 1950 e início da década de 1960 já não brincavam mais, trabalhavam. A abertura política e a nova carta constitucional iluminou o horizonte de alguns para a consciência de classe. Outros, muitos outros, se perderam no caminho, apesar de tantas canções, peças, livros e filmes.
Nos idos de 1990 muitas famílias novas se formaram e a luta para sobreviver mantendo coerência e dignidade se mostrou renhida. Afinal, desde os tempos coloniais, o Brasil só foi Pasárgada para uma minoria de endinheirados – grileiros do Estado.
Vivemos e testemunhamos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a duras penas e, apesar das inúmeras concessões ao capital, sedimentarem as bases republicanas de um Estado Democrático de Direito. E contribuímos para que o país, a contrapelo dos vícios nas engrenagens dos poderes político e econômico vivesse, pelo menos, uma dúzia de anos de progresso econômico e social. No período de 2003 a meados de 2016 foi possível, entre outras realizações, acabar com a fome e gozar de grande prestígio internacional, com Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Mas toda moeda tem seu lado reverso e as elites não se fizeram de rogadas. Mesmo com uma grande acumulação de riquezas, durante os governos petistas, os poderosos se incomodaram com as cotas nas universidades, as políticas de direitos humanos, as ações afirmativas e a mobilidade social promovidas por Lula e Dilma e cruzaram a linha da moral, da ética e da legalidade. Trataram de dar um golpe em Dilma Rousseff, maquiado pelo parlamento como impeachment. Arregimentaram um juiz arrivista, setores do judiciário e do Ministério Público se locupletaram e os barões da mídia orquestraram a encenação. Púlpitos neopentecostais – católicos e evangélicos – “abençoaram” a narrativa posta, e a deep web cuidou de infestar o país e dobrar a opinião pública com toda a espécie de sordidez. Lula, o maior líder popular brasileiro foi tirado da disputa eleitoral em 2018 e preso. Deu no que deu… Jair, (o falso Messias) Bolsonaro, foi eleito. Hoje, acuado, diante dos vários processos que cairão sobre ele se perder as eleições e a imunidade, joga o jogo mais vil, jamais visto em nossa história republicana, para permanecer no poder e garantir privilégios e o Sigilo de 100 Anos.
Não consigo dizer se é triste, decepcionante ou vergonhoso saber da existência de tanta gente – pobres, inclusive – e muitos outros, de várias classes sociais que apoiam a barbárie e àquele que se arvorou a sequestrar os bens mais preciosos do nosso país. As Forças Armadas, porque brasileiras e patrimônio da Nação, por exemplo, jamais poderão estar a serviço de governos, contra mais da metade do povo brasileiro, como quer o presidente-candidato. A nossa padroeira, Nossa Senhora Aparecida, seu templo e seus devotos ressentem, profundamente, a profanação sofrida pelos arruaceiros bolsonaristas e Jesus não pode continuar com uma arma apontada para a sua cabeça como refém de fariseus que ameaçam crentes esclarecidos e já decididos pelos valores do Evangelho.
Diante de tudo o que vivemos nos últimos quatro anos, é inacreditável que o eleitor lúcido esteja com dúvida em quem votar. Repare que nem falamos de assassinatos de opositores, tentativas de homicídios, ameaças várias, bandidos aliados, recepção de policiais à bala, imobiliária e fábrica de chocolate operando com dinheiro vivo, rachadinhas, centrão, orçamento secreto, obsessão sexual de pastoras e pastores aliados, compra de votos, insinuações pedófilas, intolerância, misoginia, homofobia, racismo, 686 mil mortos na pandemia, indústria de fake news, o desastre econômico, ataque ao salário mínimo e aos aposentados… A lista é infindável.
Chega. A hora é de partir pra cima. Sem essa de cair no conto de líderes espirituais, pastores e vigários picaretas com suas chantagens diabólicas. Se somos um povo verdadeiramente religioso, dia 30 de outubro, vamos todos votar e votar pelo bem, pela paz. Só assim Deus mostrará a sua verdadeira face para todos os brasileiros e brasileiras.
Pela qualidade da nossa geração, vamos demitir o ódio, recuperar a paz, o respeito, a cidadania e a civilidade. Vamos pegar de volta a Amazônia, a Farmácia Popular e muito mais: a dignidade, o respeito, a democracia, nossas cores e a nossa bandeira.
Imagem de destaque: “Bandeira rachada” (Site do Sindsep-PE)