Uma moeda, uma palavra – outras poesias, parte II

Ivane Laurete Perotti

_ Obrigada!

_ …não dissi tudu aina. Qui pressa!

_ Certo…certo!  Quero ouvir mais. Quero ouvir tudo!

_ Gulentosa! Tudo é dimais… ô nada, né?

Aqueles olhos tomados pelo amarelo das carências assaltavam-me em circularidade e grau. Total. Não conseguia deslizar para fora da pele murcha. Dos andrajos majestosos de rainha e guerreira. Tinha tantas perguntas! Nenhuma suficiente. Incapazes de carregar o bojo daquele fato. Um ato de bravura. Ciência. Política. Estética crua.

_ Eu gostu di palavras. Elas cuchicha cumigu dia i nôti! Faiz cóssgas nas buchecha. Ispremi meu nariz. I é pur isso qui pidu umas pratinha. Pratinhas por palavra.

_ Será que esse seu bordão não deveria ser “uma moeda por um poema”?

_ Num sei fazê poema… sei cunversá c’as palavra que vêm cheganu…cheganu… elas sempre tão cheganu. Inté palavras istranha.

_ Diferentes?

_ Nada… qui nunca oví antis.

_ Assim como…

_ Qui ninguém mi dissi, craro! Cê tem dificurdadis, hem?

_ Muitas!

As risadas atravessaram o tempo. Parado. Olhando de fora. Recortando os verbos empilhados a esmo sobre a tábua de passar. Passamento. Passatempo.

_ Naum passu! Tiru elas das fila, tendi? Palavra num podi ficá parada, dá mofo. Intãum, disabu im poesia.

_ Entendo. Eu acho…

_ Acha nada! Elas qui acha a genti.

_ É! Parece…

_ I, tamém, num podi acolocá tudo ao sor. Tendeu?

_ … tentando!

_ Pois intãum, eu sô a tauba… tauba di expunhá palavra.

Ri alto. Rica! Momentaneamente rica! Alçada pelos cabelos. Vísceras linguísticas tombadas sobre a mesa. Emoções em cataratas. Do Iguaçu, em período de cheia. A língua tem bordas e farpas. As linguagens, pontes e feltros. Cola quente saía dos poros daquela mulher. Mirrada. Carcomida pelas ausências. Dependências. Colava as vibrações odorantes da língua e das linguagens. Muitas. Todas. Da vida e da morte. Do mundo e da sorte. Entendimentos dobrando sinos. Hemingway empunhara paixões. Ela, a lâmina fina das lágrimas urdidas no lácio estético da epiderme.  Estômago laico. Boca santa. Coração sem eixo. Sinos e bovinos em pátio só. Almas e palmas. Armas e fraldas borrando o asfalto.

A espada fora depositada sobre a mesa. Deitada, assim, deixava ver as tentativas de corte e cola. Pedaços de letras. Escritas. Furos e dobras. Recortes e amassamentos. Limites de um desenho limado pelo corpo. Quente. Sólido em sua magreza macilenta. Equação consorte.  Lívida política social dos apagamentos. Por fomes, por medos. Pobres dos desatentos! Morria-se, a cada dia, em lentidão calculada. Controle da indiferença. Via a menos. Corrupção a mais.

A “barrigudinha” permanecia intacta.

_ Você não irá beber?

_ Num bebo, mulé! Só adistribuo di prêmu!

_ Para quem?

_ Pras palavra. Quandu a nôti chega, elas si arrecolhi pra di dentru di minha cabeça. Intãum, é hora di apremiá as porbezinha.

_ E… você não quer comer alguma coisa?

_ Arguma coisa num é di comê, mulé! Eu só comu di manhã. Pra não acostumá mar essi corpu secu. Vai qui pedi mais?

Ela ria do trocadilho como se o mundo inteiro coubesse ali: na compreensão do humor solto. Urro à resistência. Murro na resiliência, essa malformada metáfora da aceitação.

_ Ô, dona? Meu corpu pedi arma.

_ …

_ Si as sola dus pé tá macia, macia dimais, a arma num tem calejus.

_ Ah!

_ Si us carcanhá tá nu arregassu, grossu di chujêra, elis cria cascu na arma tamém. Cumprieendi?

_ Você fala do espírito… da…

_ Da arma dus homi sem arma. Sacô?

_ …

_ Tava pensanu na ôtra, né? Nas armadia daquelis bandidu …  us bandidu qui tão nu poder, né? Né?

_ É! Exatamente.

_ Nasci nas curva das mintira, mulé. Mintira c’os homi cria. Só prá tê poder. Ganança. Cê vota?

_ Sim! Claro! Voto sim!

_ Vai votá ni mim?

_ Em você? Eu…

_ Sô candidata! Meu sangui, minha bandera. Minha ispada corta orêa!

_ Imagino!

_ Magina, naum., mulé! Cê tá’í… eu tô aqui. Sou tauba…só minha poesia sarva o dia.

_ Sim, eu posso…

_ Podi? Podi votá ni mim?

_ Posso!

_ Intão, iscrevi aí minhas letra: …

Enquanto falava, atravessou a espada de papelão sobre o peito murcho. Olhos brilhando com lucidez magnética. Vítrea. Férrea. Arrepiei-me como se vultos invisíveis arrastassem unhas sobre minha pele eriçada. Viração nas entranhas. Ela abria o meu interior. Sem chave. Sem reza. Sem vacilo. Nua, senti o frio do mundo. Pontiagudo. Urgente. A maquiagem obscura e criminosa do sistema atual craquelando-se bem ali. No espaço de um quase-lugar de fato. Dos fatos.

Queria dizer para a amazona que eu sentia. Sentia as garras das fraudes que nos envolviam. Os espinhos ignotos que subiam por debaixo da mesa tensionando as galochas descalças. Mito e pecado. Sísifo em astúcia e rocha. Correntes ideológicas. Crenças e corrupções. Apartheids.  Tentei alcançá-la.  Arguta, a espadachim das palavras mantinha-me longe. Suplicante, soletrei clemência.

_ Tem “santinhos”, por favor!

_ Santos não há. Os que existem são homens. Homens de gravata. Colarinhos. Pastas. Rachadinhas. Maus. Violam leis. Crianças. Armam o povo para dividir a força. Sacrílegos. Fascistas. Usurpadores da vida.

_ Eu…, mas, voc… você…

_ Vota ni mim?

_ V… voto! Voto em você… por mim.

_ Cê tá cum pobremas, mulé!

À mostra, a gengiva montanhosa liberou gargalhada limpa. Translúcida.

_ Ei! Seu nome, por favor!

_ 1+3

_ São … numerologia?

_ Pitágoras.

_ Mas…

_ 3331

Engoliram-na, a Contorno e suas esquinas. A paladina do cimento consumiu-se em poesia. Eu, volto lula. Preciso dizer a ela que sustentei o meu voto. Por mim, por outros e outras. Desejo as esquinas vazias de fomes. De gentes secas de peito e escola. Desejo!


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