O amor e o ódio e as variações de poder

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

Muitas vezes nos sentimos perplexos em relação à intolerância, ficamos estupefatos diante de posições negacionistas que desafiam a racionalidade humana ou mesmo face a posições autoritárias. Intolerância, negacionismo e autoritarismo não são exclusividades da contemporaneidade, embora existam singulares contornos desses fenômenos, como é o caso da atual “cultura do cancelamento”. Certamente tudo isso reflete um sistema de formação humana (lato sensu) e a consequente qualidade das pessoas se relacionarem, especificamente no que diz respeito a aceitação, a capacidade de amar, de odiar, mas sobretudo na qualidade da relação de poder que as atravessam.

Carl Gustav Jung, dissidente da psicanálise, legou-nos um entendimento sobre o amor, o ódio e o poder. Para o analista suíço, o ódio não seria o oposto do amor, mas sim o poder. Isso nos faz produzir alguns questionamentos: Qual a relação entre o amor e o ódio? O que os distingue do poder? Haveria variedades de poder?

Para começar a discorrer sobre essas qualidades das relações, trago algo da minha própria história de vida e que emerge a partir de cenas de um sonho que eu vivi.

Bem, outro dia tive um sonho intenso e que me fez pensar sobre essas questões aqui abordadas. Eu estava à procura do meu pai e depois de um tempinho o encontrei e combinei com ele que teríamos que sair dali daquele lugar. Passei a caminhar na frente e em um dado momento parei para aguardá-lo. Como ele não chegava, voltei a procurá-lo. O reencontrei em um bar, já embriagado. Isto me deixou possesso e comecei a quebrar tudo que estava no bar, como as garrafas de bebidas e os copos de vidros, que se amontoavam estilhaçados no chão. Em estado de cólera gritei: “Meu pai! Eu te amo tanto, mas também te odeio tanto!”. Na intensidade do sonho acordei. Sabia que tudo aquilo tinha a ver com a minha história, com a história do meu pai e sua relação com o álcool.

Passei a meditar sobre aqueles sentimentos que vivi no sonho. O ódio não impedia o amor que sentia por meu pai. Ao contrário, ele só existia porque havia amor. Bem verdade, que era um amor ferido, não correspondido. E, obviamente, o ódio existia porque eu não aceitava meu pai na sua relação com álcool. Contudo, o que quero chamar atenção é que, apesar do ódio, o amor estava lá, estava em alguma parte e que podia ser “recuperado”. Bem verdade que não estou muito seguro de que todo ódio tem por trás um amor. Não sei… talvez não seja tão assim generalizável.

Porém, o ódio (intensidade da raiva, da agressividade e da iminência de destruir) é uma fonte particular de íntima relação com o outro. Tanto o amor, quanto o ódio são relações íntimas em que os parceiros de relação se colocam em afeto. Afetamos o outro e somos implacavelmente afetados de modo a evidenciar uma conexão que marca os parceiros de relação. Existem, portanto, transformações à medida que se dá a implicação, pois o ser do outro nos toca e tocamos o ser do outro.

Na relação de poder, pelo menos numa variedade de poder, colocamo-nos em patamar de superioridade com o outro e a partir daí subjugamos nosso parceiro de relação. Buscamos o seu controle de maneira intencional de modo que não há possibilidade de implicação, não há mutualidade. O que há é uma relação de uso, de redução do outro, de coisificação do outro e mesmo o seu aniquilamento. Nessa variedade de relação de poder as transformações dos parceiros inexistem.

Na modernidade são conhecidos os entendimentos de Francis Bacon, assim como na contemporaneidade os estudos de Michel Foucault sobre a questão do poder. Notadamente o poder é visto como dimensão inexorável de qualquer relação (relação é sempre relação de poder). Contudo, chamo atenção para uma variedade de poder que toma a relação com o outro na perspectiva da subjugação, do poder colonizador, do poder enquanto ausência de implicação.

Dito de outro modo, apesar do amor existir em suas múltiplas formas há implicações. E de maneira semelhante, apesar do ódio existir também em suas múltiplas formas (e até mesmo no desejo de aniquilar o outro ou mesmo a si mesmo), há implicação. No caso do poder de subjugar o outro, não há implicação. O que há é a intenção de afetar o outro sem aceitar o seu reverso.

É bastante razoável concluir que necessitamos, enquanto humanos em permanente processo de humanização, aprender a amar, bem como lidar com os nossos sentimentos de ódio. Contudo, parece ser mais urgente revermos a variedade de poder que tem pautado nossas dinâmicas sociais, nossas histórias e a qualidade das nossas relações. Essa variedade de poder, que acertadamente na “visão junguiana” é o legítimo contrário do amor, tem a ver com o poder que subjuga e aniquila o outro, com o poder mediador de processos colonizadores da vida e que produzem, como parâmetros normatizadores, a intolerância, o negacionismo e o autoritarismo.

 

Sobre o autor
Dr. em Educação. Professor do Colegiado de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). E-mail: marcelo.ribeiro@univasf.edu.br


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