Nos canteiros do silêncio

Se há um livro que você quer ler e ele ainda não existe, escreva-o”: 

Alexandra Lima da Silva

De leitora de literatura de autoria feminina negra, tornei-me escritora. Segui os conselhos de Toni Morrison: “Se há um livro que você quer ler e ele ainda não existe, escreva-o”. Eu precisava dar à luz à Rosa, Margarida, Violeta, Tarsila. Todas as personagens que habitam os livros gerados por mim nestes últimos 3 anos. 

Lendo Bell Hooks, eu aprendi que amor também é responsabilidade. E talvez toda a sociedade precise praticar o amor desde muito cedo, porque “o amor é o que o amor faz, e é nossa responsabilidade dar amor às crianças. Quando as amamos, reconhecemos com nossas próprias ações que elas não são propriedades, que têm direitos – os quais nós respeitamos e garantimos.  Sem justiça, não pode haver amor” (hooks, 2020, p. 72).  

Ainda nas palavras da autora, a pedagogia do amor deve ser praticada desde o nascimento, pois “em um mundo ideal, todos aprenderíamos na infância a amarmos a nós mesmos. Cresceríamos seguros de nosso valor e merecimento, espalhando amor aonde quer que fôssemos, deixando nossa luz brilhar” (hooks, 2020, p. 107). Mas talvez o amor mais difícil de ser conquistado seja o “amor-próprio” verdadeiro, pois é somente quando aprendemos a nos amar, estamos prontos para amar outras pessoas: “não espere receber de outra pessoa o amor que você não dá a si mesma” (hooks, 2020, p. 107).

O título “As rosas que o vento leva” remete ao protagonismo feminino, aquelas mulheres negras que nem sempre são lembradas. É também uma metáfora para a dor, as separações, o esquecimento. 

Neste livro, aproveito para falar também da importância do afeto, da solidariedade e dos laços familiares. Eu gosto especialmente da relação da protagonista, uma anciã, com uma jovem menina, remetendo à importância da ancestralidade e da passagem de saberes entre as gerações. 

E como é importante valorizar essas guardiãs das memórias nas famílias. 

A escrita deste livro foi mesmo uma gestação, levou em torno de 9 meses. 

Publicado durante a pandemia, a vida deste livro tem sido repleta de surpresas para mim, pois o livro tem sido acolhido por pessoas de diferentes faixas etárias. 

Costumo dizer que eu não consigo classificar o livro “As rosas que o vento leva.” Porque ele é híbrido: tem pedaços de mim nele, porque me alimento das minhas memórias de infância; e também, me alimento das pesquisas em documentos históricos e leituras sobre o tema; e em ficção, em conversa com outras escritoras negras.

Assim como Ana Maria Gonçalves se inspirou na biografia de Luíza Mahin para construir o romance ficcional Um defeito de cor, me inspirei nas vidas de mulheres negras da família de Israel Antônio Soares, um liberto da escravidão no século XIX, para conceber o livro As rosas que o vento leva, sob o pseudônimo de Xandra Lia:

“Meu avô Israel tentava conciliar o tempo do trabalho com o tempo da Irmandade e com o tempo da criação do filho… E procurava povoar a solidão com atividades. Ele apenas não conseguia ocupar o espaço que a ausência de Josefina lhe causou. Ele precisava preencher esse vazio. Foi assim que criou uma escola noturna na casa alugada que durante o dia abrigava a quitanda da mãe. Na escola noturna, ele recebia pessoas negras de diferentes situações jurídicas: livres, cativas e libertas. E lá ele compartilhava todo o conhecimento que tinha. Israel acreditava que estudar era um direito de todas as pessoas, independente da cor. A escola foi fundada em 1877. Tal iniciativa chamou a atenção de importantes abolicionistas da cidade, dentre os quais José do Patrocínio, e daí nasceu uma forte amizade” (Lia, 2020, p. 50).

Inicialmente, meu projeto era escrever um romance histórico voltado para o público adulto. Contudo, a constatação de que ainda há pouco investimento na literatura juvenil voltada para a população negra, mudei meus planos: decidi escrever um livro com protagonismo feminino negro, de modo a trazer outras imagens de família negra para a juventude, em tempos de liberdade, no pós-abolição.  

A palavra escrita e literatura foram as fontes de realização para Toni Morrison. A partir de fragmentos e com muita imaginação, Toni Morrison construiu outras narrativas para mulheres negras historicamente silenciadas e sub-representadas nas artes, na literatura e nos livros de história. Toni Morrison também sentiu na pele as dores do racismo, do sexismo e das opressões de gênero, raça e classe nos Estados Unidos. 

A obra de Toni Morrison é uma oportunidade para que historiadoras/es possam compreender  os desafios e a importância das obras literárias como um caminho para construir outras narrativas, e romper silêncios, apesar da confissão de nutrir “uma dependência, sólida e contínua, da história, em parte por buscar informações, mas sobretudo, por buscar precisamente aquelas lacunas, aqueles apagamentos, aquela censura”. É nos interstícios da história registrada que frequentemente encontro o ‘nada’ ou o ‘não obstante’ ou a informação ‘indistinta’, ‘incompleta’, ‘desacreditada’ ou ‘enterrada’ que me interessa” (MORRISON, 2020, p. 363). 

De forma honesta e franca, Toni Morrison nos brinda com os bastidores do processo de construção de obras literárias como O olho mais azul.  Inspirada em suas recordações de infância, o primeiro livro de Toni Morrison explorou um universo que ela conhecia bem:  os desejos e angústias de “jovens negras e vulneráveis” as quais estavam completamente ausentes dos textos de história e de literatura. Como historiadora de formação, tendo a concordar com Toni Morrison quando ela afirma que:

“Por mais que a análise histórica tenha mudado (e mudou enormemente) e se tornado mais abrangente nos últimos quarenta anos, os silêncios sobre certas populações (minorias), quando finalmente articulados, ainda são entendidos como relatos suplementares de uma experiência marginal; um registro suplementar, dissociado da história oficial; uma nota de rodapé expandida, por assim dizer, que é interessante, mas de pouca centralidade no passado da nação”. (MORRISON, 2020, p. 363).

A fonte da escrita em Toni Morrison é o silêncio, habitado por imaginação e experiência. Foi a lembrança de uma menina negra que desejava ter olhos azuis o pedaço que deu início ao primeiro romance da escritora. Já o aclamado romance Amada nasceu do encontro da autora com um recorte de jornal, um fragmento a respeito de uma mulher negra escravizada de nome Margaret Garner. E Toni Morrison foi também uma colecionadora de pedaços:

“Os pedaços (e apenas os pedaços) são o que começa o processo criativo para mim. E o processo pelo qual junto esses pedaços até que eles formem uma parte é criação. Memória, então, não importa quão diminuto seja o pedaço lembrado, exige meu respeito, minha atenção, minha confiança” (MORRISON, 2020, p. 419).

Conforme ensinamentos de Conceição Evaristo, quando falamos das experiências das mulheres negras no Brasil, muitas vezes, trabalhamos nos canteiros do silêncio e do apagamento:

“A fragmentação do relato compõe, de certa forma, uma estética em rede, acentuada pelos elos que vão se formando à revelia de uma linha mestra, tal como os barracos que nascem procurando ocupar os parcos espaços ainda não habitados. Não é o plano, a planta-baixa que define o processo narrativo privilegiado. É a necessidade de resgatar as histórias que as lembranças vão recompondo, muitas vezes associando pedaços de umas ao que sobra de outras” (EVARISTO, 2017, p. 196)

Ela

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