Francisco Ângelo Coutinho
Charbel N. El-Hani
Morreu, no dia 26 de julho, o pesquisador e ambientalista britânico James Lovelock, aos 103 anos, em Dorset, Inglaterra. Ele se tornou mais conhecido por propor a Hipótese Gaia (HG), segundo a qual biosfera, atmosfera, hidrosfera e litosfera são conectadas por alças de retroalimentação num sistema cibernético que mantém o ambiente físico-químico da Terra habitável para os seres vivos. Ele frequentemente se referia a esta hipótese como a ideia de que o planeta Terra como um todo funciona como um sistema vivo, o que constitui boa estratégia para aumentar a capacidade de comunicação de sua hipótese, mas também fez com que muitas vezes Lovelock fosse visto com certa suspeita pela comunidade científica. A HG não foi a única contribuição científica importante de Lovelock. Podemos citar como outro exemplo de suas contribuições a hipótese CLAW (acrônimo formado pelas iniciais dos nomes dos quatro cientistas que a propuseram, Charlson, Lovelock, Andreae e Warren, que propõe, em linhas gerais, um mecanismo de retroalimentação negativa pelo qual algas planctônicas exercem influência na formação de nuvens sobre o oceano e no clima global pela síntese e exsudação de um composto de enxofre. A HG foi, no entanto, sua contribuição de maior impacto, tendo sido uma das bases para que tenha surgido, posteriormente, uma ciência dos sistemas terrestres. Em anos recentes, ela vem atraindo a atenção de mais e mais pensadores e pensadoras que se dedicam a refletir sobre os impactos antrópicos no clima e suas consequências catastróficas para a vida dos humanos e outros mais que humanos.
A HG, como relata o próprio Lovelock, em seu Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra (Lisboa, Edições 70), foi elaborada a partir da necessidade prática de se encontrar um experimento universal de detecção de vida em outros planetas. Lovelock era consultor da NASA, no início da década de 1960, quando estavam sendo traçados os primeiros planos para a detecção de vida em Marte. Sua função era a de dar pareceres sobre a concepção de instrumentos para esse fim.
Naquela ocasião, planejavam-se experimentos para a detecção de vida baseando-se nos pressupostos de que as formas de vida em Marte seriam muito similares às da vida na Terra. Propunha-se então uma série de experiências para avaliar a presença de bactérias, fungos e outros microrganismos, além de testes que indicassem a presença de substâncias químicas como proteínas, aminoácidos, carboidratos etc. No entanto, segundo Lovelock, algumas dúvidas começaram a surgir: como podemos estar certos de que as formas de vida em Marte são suficientemente similares às formas de vida na Terra, de modo que tais experimentos realmente funcionassem? O que é vida e como seria possível seu reconhecimento?
A primeira sugestão de Lovelock foi a de que o experimento universal para detecção de vida deveria basear-se na procura de uma redução da entropia, visto dever ser esta uma característica geral de todas as formas de vida. O físico austríaco Erwin Schrödinger já havia sugerido, em 1944, que os sistemas vivos são sistemas capazes de diminuir a sua entropia interna à custa de substâncias e de energia retiradas do meio – com maior energia livre, ou seja, capaz de produzir trabalho – e posterior excreção de substâncias com menor energia livre. Assim, a diminuição da entropia interna a um sistema vivo ocorreria às custas de um aumento da entropia em seu ambiente. Um organismo vivo sofre mudanças contínuas, envolvendo milhares de reações químicas, no que denominamos metabolismo, e dessa maneira consegue manter sua estabilidade estrutural, por manter-se fora do equilíbrio termodinâmico. O equilíbrio termodinâmico é atingido quando todos esses processos cessam. Em outras palavras, um organismo em equilíbrio é um organismo morto.
Porém, partindo-se do princípio de que a vida, em qualquer lugar do universo, é dependente da utilização de meios fluidos – oceanos, atmosfera, ou ambos – como sistemas de onde obtém matérias-primas e para onde elimina resíduos, é esperado que atividades relacionadas com a redução da entropia interfiram nesses meios fluidos, alterando sua composição. Assim, a atmosfera de um planeta com vida seria diferente daquela de um planeta estéril.
A análise de nossa própria atmosfera mostra que essa contém, por exemplo, metano e oxigênio ao mesmo tempo. Com a luz do Sol, esses dois gases sofrem uma reação química que produz dióxido de carbono e vapor d’água. Para manter sempre a mesma quantidade de metano presente na atmosfera, é necessária a introdução anual de um bilhão de toneladas deste gás. Além disso, deve existir uma forma de substituir o oxigênio consumido na oxidação do metano, o que requer a produção de pelo menos o dobro do oxigênio, relativamente à quantidade de metano. Outros gases reativos também fazem parte da constituição da atmosfera terrestre. A presença de óxido nitroso e amoníaco é tão anômala quanto a de metano. Mesmo o nitrogênio na sua forma gasosa (N2) possui taxas anômalas, visto que seria de se esperar que encontrássemos esse elemento na forma química estável do íon nitrato, dissolvido no mar. A análise da atmosfera de nosso planeta, portanto, mostra uma composição química altamente improvável. Como observa Lovelock, trata-se de um sistema que se mantém afastado do equilíbrio. Esta seria, assim, uma assinatura da vida, que poderia ser buscada em outros planetas, ajudando a chegarmos a uma conclusão sobre se conteriam vida ou não.
O resultado desta abordagem foi a elaboração da HG, ou seja, da hipótese de que a Terra é uma entidade complexa, um sistema cibernético que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo, e mantém o ambiente físico-químico da Terra habitável para os seres vivos. Na sua totalidade, a Terra constitui, portanto, um sistema de retroalimentação que mantém um meio físico-químico e orgânico indissociáveis. Dessa forma, estamos diante de uma proposta segundo a qual a vida não é uma propriedade que vem de fora e nem uma propriedade ou entidade habitando o interior da matéria. A vida aqui pode ser caracterizada como uma propriedade relacional. As consequências educacionais e filosóficas dessa proposta não podem ser menosprezadas, dado que ela expõe nossa mutualidade com os demais seres orgânicos e não orgânicos com quem compartilhamos Gaia.
Sobre os autores
Francisco Ângelo Coutinho: Graduado em ciências biológicas (UFMG), mestre em filosofia (UFMG) e doutor em Educação (UFMG). Professor Associado da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na graduação e na pós-graduação. Líder do Grupo Cogitamus – Educação e Humanidades Científicas.
Charbel Niño El-Hani: Professor Titular do Instituto de Biologia, UFBA. Coordenador do Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia (LEFHBio) e do INCT em Estudos Interdisciplinares e Transdisciplinares em Ecologia e Evolução (INCT IN-TREE). Entre Janeiro de 2020 e Julho de 2021, foi pesquisador visitante do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal.
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