Morre Bruno Latour, o Antropólogo dos Modernos

Francisco Ângelo Coutinho
Gabriel Menezes Viana
Geisieli Rita de Oliveira

Na madrugada de 09/10/2022, morreu em Paris o pensador francês Bruno Latour. Na mesma data na qual há 55 anos falecia Ernesto “Che” Guevara, o mundo perdeu um outro controverso revolucionário, que traçou sua batalha com textos e com práticas nos campos da antropologia, filosofia, sociologia do conhecimento, artes e ciências. Latour foi descrito pelo jornal americano The New York Times, em 2018, como “o mais famoso e incompreendido filósofo francês”.

Latour nasceu em 22 de junho de 1947, em uma família de comerciantes de vinho, em Beaune, distrito de Bourgogne (França). Ele frequentou uma escola jesuíta em Paris e se formou em filosofia e antropologia. Após se formar, atuou em uma investigação sobre os trabalhadores em fábricas na Costa do Marfim. Foi professor titular do Instituto de Estudos Políticos de Paris e da London School of Economics and Political Science. Lecionou, também, nos Estados Unidos, na Alemanha e em outros países. Publicou mais de 30 livros e mais de 180 artigos. Recebeu 28 prêmios e títulos, dos quais destacamos o prêmio Holberg de Ciências Sociais (2013) e o prêmio Kyoto (2021), além de ter sido curador das Critical Zones no Centro ZKM de Arte e Mídia de Karlsruhe (Alemanha) e da Bienal de Arte de Taipei (Taiwan).

A obra de Latour o coloca entre os mais proeminentes analistas das ciências e do que se convencionou chamar de modernidade. Seu pensamento encontrou abrigo em outros autores situados dentro do campo dos estudos de ciências e passou por desdobramentos, que estabeleceram um referencial de pesquisas conhecido como Teoria Ator-Rede. Essa teoria, atualmente, coloca-se como uma forte ferramenta teórico-metodológica e leva Latour a ser explorado em campos tão diversos quanto a sociologia, a antropologia, a arqueologia, o turismo, a economia, a filosofia, a administração, a psicologia e a educação, entre outros, como teologia ou ecologia política.

Latour propõe que o que se denomina de “social” deve ser definido como associação e compreendido em termos de rede, ou ator-rede, que envolve uma heterogeneidade de elementos humanos e não humanos. Da perspectiva de Latour, o social não é uma instância privilegiada da realidade, ou uma substância, ou causa, que explica como as pessoas agem ou se relacionam. Pelo contrário, o “social” é que deve ser explicado. Em seu livro Reagregando o Social (Edufba, 2012), retomando o significado original da raiz latina socius (associação), Latour assevera que a tarefa do pesquisador deveria ser a de, ao invés de utilizar a palavra “social” para explicar os fenômenos que ocorrem na vida dos humanos, deter-se na busca do entendimento das associações que estes estabelecem entre si e com os não humanos e de como essas associações se estabilizam gerando o social. O projeto analítico aqui, portanto, é investigar como certas entidades se tornam relacionadas a outras, formando redes, e como, em certos casos, esse processo leva à estabilização de atores-rede relativamente duráveis e extensos.

Apesar de ser bastante conhecido por sua etnografia A Vida de Laboratório (Editora Relume Dumará, 1997), publicada conjuntamente com Steve Woolgar, Latour, de acordo com alguns comentadores, sempre possuiu uma agenda de pesquisa mais ampla, cuja intenção foi responder à questão “O que é um Moderno?” Ao invés de derivar sua pesquisa a partir da hermenêutica dos grandes pensadores e intelectuais, Latour procurou entender o mundo moderno como um antropólogo e, enquanto tal, deslocou-se para espaços tão diversos como laboratórios, tribunais, exposições de arte, textos religiosos e filosóficos e clínicas psiquiátricas ou acompanhando cientistas em trabalhos de campo, enquanto estes procuram resolver controvérsias científicas.

Em seu livro Jamais Fomos Modernos (Editora 34, 1994), Latour justifica a escolha da antropologia como abordagem ao entendimento dos modernos por ser esta a ciência que seria capaz de ligar uma ampla variedade de diferentes temas. A aspiração de Latour era fazer algo similar, investigando a modernidade falando de muitas e diferentes coisas ao mesmo tempo. A questão posta por Latour então é: o que caracteriza esse coletivo ao qual chamamos de modernidade?

Para responder a essa questão, Latour introduz um experimento de pensamento segundo o qual haveria uma “Constituição”, que estabelece as regras do pensamento e da ação dos modernos. Nele, Latour imagina que essa Constituição moderna age como uma constituição política, atuando como um tipo de lei comum e prescrevendo certas divisões de poderes, direitos e garantias. A Constituição moderna define, pois, nossa visão da natureza, da ciência, da sociedade, da religião etc. e, por isso, precisa ser desvelada.

Latour sugere que a análise dos modernos apresenta um paradoxo estranho. Por um lado, percebemos um intrincado entrelaçamento de toda sorte de elementos e atores. Por exemplo, a “camada de ozônio” é um híbrido que mistura as pesquisas dos químicos, as linhas de montagem das indústrias, as decisões políticas dos países industrializados, o padrão de consumo dos países desenvolvidos, o movimento ambientalista e, até mesmo, o Direito e a preocupação com as gerações futuras, ou seja, com pessoas que ainda não nasceram. Por outro lado, um aspecto fundamental do mundo moderno é justamente estabelecer categorias rígidas, que nos obrigam a distinguir entre conhecimento e interesse, justiça e poder, social e natural, ciência e tecnologia. De modo mais claro, haveria na modernidade uma postura metafísica essencialista segundo a qual o mundo deve ser dividido em categorias com fronteiras claras e preestabelecidas. Eis, então, o paradoxo: com um fenômeno depois do outro, a modernidade mistura aquilo que havia pensado ter separado.

Suas inquietações e provocações sobre os modernos formariam o alicerce a partir do qual ele viria mais tarde a produzir a densa e propositiva obra denominada Investigação sobre os Modos de Existência: uma antropologia dos modernos (IME) (Editora Vozes, 2019). Nessa obra, Latour apresenta respostas às promessas feitas em Jamais Fomos Modernos, as quais foram duramente perseguidas ao longo de duas décadas que separam os dois livros, entre vários estudos, parcerias, ensaios filosóficos e experimentações empíricas. Em IME, Latour alinha um arcabouço teórico-metodológico e analítico, que, como o próprio nome diz, traz as orientações para a investigação dos modernos, as quais estariam respaldadas no mapeamento de valores, em especial nas condições de (in)felicidade e de princípios de verdade.

Mais recentemente, Latour começou a aplicar sua visão antropológica e filosófica à urgência da situação de crise ecológica planetária. Fazendo-nos refletir sobre as ações e políticas em tempos de Antropoceno, o autor, em sua linguagem sempre afiada e instigante, nos implica, os humanos, em um mundo que reflete e refrata nossas ações, obrigando-nos, assim, a nos posicionarmos no decorrer de um furioso front mundial de modernização e de um Novo Regime Climático “diante de Gaia”; um envelope notadamente composto de atmosfera e oceanos, moldado por todos os seres vivos e no qual devemos agora “pousar” em vez de viver acima do solo.

No seu último livro, Mémo sur la Nouvelle Classe Écologique (La Découverte, 2022), publicado em janeiro deste ano em coautoria com o sociólogo dinamarquês Nikolaj Schultz, Latour condensa suas ideias apresentadas nos livros anteriores Onde aterrar e Onde estou, ambos pela Editora Bazar do Tempo, mas sob a forma de uma “prosa de combate” destinada a fazer emergir novos afetos. Em colaboração com Schultz, Latour postula uma mudança ilustrada pela epidemia de Covid-19, que poderia revolucionar a maneira como vivemos. Em entrevista para o jornal The Gardian, ele afirma que uma ideia pode se tornar viral como uma doença e que pensamentos libertadores podem viajar tão rápido quanto a Covid.

Embora o trabalho de Latour não trate diretamente de questões de Educação, diversas são as reverberações para esse campo. Latour nos possibilita estudar os processos e não o produto na educação, e investigar as humanidades científicas, as práticas sociomateriais, as tecnociências, as redes sociotécnicas, a cartografia das controvérsias e uma gama diversa de possibilidades que o espaço destinado a este texto não seria capaz de honrar. Se, como nos diz Patrice Maniglier, nossa época atual é latouriana, imensa é a tarefa que nos cabe agora de visitarmos a sua obra e nos apoderarmos do chantier que ele nos legou. Allons-y, monsieur Latour!

Sobre os(as) autores(as)
Francisco Ângelo Coutinho é Graduado em Ciências Biológicas (UFMG), Mestre em Filosofia (UFMG) e Doutor em Educação (UFMG). Professor da Faculdade de Educação da UFMG, onde atua na graduação e na pós-graduação. Líder do Grupo Cogitamus – Educação e Humanidades Científicas.

Gabriel Menezes Viana é Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG). Doutor e Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), onde leciona no curso de licenciatura em Ciências Biológicas e no Mestrado em Educação (PPEdu).

Geisieli Rita de Oliveira é Graduada em Ciências Biológicas (UEMG), mestre em Educação Tecnológica (CEFET-MG), Doutoranda em Educação em Ciências (FaE-UFMG) e Coordenadora Executiva do Projeto Afrociências (CNPq – Programa Ciência na Escola).


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