Pedro Batela Neto
A Educação Básica Brasileira é formada por diferentes etapas e modalidades e a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mesmo compondo esse quadro na categoria modalidade, é vista por muito sujeitos, inclusive dentro do campo educacional, como uma nova “chance” ou “oportunidade”, e denominada reiteradamente como “ensino irregular”, em oposição à expressão ensino regular, utilizada frequentemente para referirem-se à escolarização ofertada para crianças e adolescentes.
Ao pesquisar os múltiplos significados desses termos no dicionário, constatei que regular é tudo aquilo que tem continuidade, que é harmonioso, que está em conformidade com a moral, as regras e as leis, e irregular é o seu oposto. Infelizmente, essa percepção da EJA não tem implicações apenas semânticas. Ela traz consigo também consequências concretas e perversas para a vida de milhões de sujeitos que compõem os coletivos de educandos e educadores de EJA espalhados pelo país.
A compreensão da EJA como ensino irregular contribui para que essa modalidade seja preterida pelos poderes públicos na elaboração de políticas de Estado e na destinação de recursos, fazendo com que ela não goze das mesmas prerrogativas que as outras categorias na organização escolar brasileira, aprofundando o abismo de desigualdades que separa a EJA de direito constitucional e a EJA de fato. Este abismo é cavado, dentre outros itens que contribuem diretamente para a precarização da EJA e seu distanciamento intencional da Educação de Qualidade Social, por:
- O Fator de Ponderação, indicador de quanto será investido por educando em cada etapa e modalidade, destinado à EJA ser o menor entre todos os integrantes da Educação Básica.
- Recorrência do funcionamento de escolas/turmas através de projetos intermitentes, dentro do formato de polos por região, sem ofertar todas as disciplinas obrigatórias que compõem o currículo, agrupadas por área de conhecimento, contando com educadores sem formação específica para atuar na disciplina que lecionam, com um quadro docente incompleto ou mesmo na base da unidocência, isto é, quando temos um mesmo educador ministrando todas as disciplinas independentemente de sua formação.
- A oferta de vagas para atendimento educacional na EJA ser, em grande parte das redes públicas de educação, em número tão reduzido que hoje temos 3.273.668 educandos matriculados na EJA em todo o país, ou seja, 96,3% do total dos sujeitos que tiveram seu direito negado quando eram crianças e adolescentes, continuam tendo-o negado agora que são jovens, adultos e idosos, segundo dados do Censo Escolar/INEP 2019, pois são 88 milhões no total. Isso impossibilita, assim, que o quantitativo seja suficiente para atender a demanda de matrículas, fazendo com que os nomes dos sujeitos passem a figurar nas listas de espera por vagas que não serão atendidas, uma vez que turmas continuam sendo fechadas em escala crescente.
- A formação inicial ou continuada em serviço para educadores que pretendem trabalhar ou que atuam em turmas de EJA, quando existe, ser insuficiente ou inadequada para impedir que muitas das práticas pedagógicas desenvolvidas com crianças e adolescentes sejam reproduzidas automaticamente nessa modalidade.
- Escassez ou inexistência de concursos para profissionais da educação que pretendem lecionar nessa modalidade. Nesse sentido, meu ingresso como educador na EJA na Rede Municipal de Contagem é emblemático. Embora tivesse experiência e o desejo de entrar para os quadros da EJA, só consegui realizá-lo porque fiquei excedente na escola em que estava lotado e quando fui à Secretaria de Educação escolher outra vaga, percebi que havia uma disponível. Em todos os certames que participei para trabalhar na Educação Básica, em nenhum dos editais foram disponibilizadas vagas para atuar na EJA, ainda que elas existissem e demandem profissionais específicos para atuar de maneira a não levar os educandos ao abandono.
- A concepção de educação, em alguns casos, ser fundamentada em uma lógica supletiva e reducionista de certificação. Nessa perspectiva, trata-se apenas da possibilidade de acelerar os estudos para os educandos considerados com atraso escolar e, consequentemente, recuperar o tempo perdido.
Ressalto que, embora muitas das propostas atuais de EJA não se configurem como tal, isso não tem impedido que, graças ao compromisso e a dedicação de muitos educadores, trabalhos belíssimos venham sendo realizados com os educandos dessa modalidade Brasil afora, ou melhor, adentro.
Considero, portanto, fundamental lançar um outro olhar sobre a EJA, reconhecendo-a como uma modalidade de ensino voltada para sujeitos específicos detentores de saberes múltiplos, com identidades, características e concepções político-pedagógicas próprias dos seus processos de ensino-aprendizagem, mas, sobretudo, como um direito público subjetivo e inalienável dos seus educandos, uma vez que o direito à educação desses sujeitos é garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e por nossa Constituição Federal de 1988, estando seus marcos legais expressos e regulamentados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996.
Para a efetivação da EJA enquanto direito, entretanto, nunca será o bastante permanecer na denúncia. É vital garantir que ela receba um tratamento isonômico no contexto da Educação Básica, visando, dessa forma, assegurar o acesso e a permanência, independente da idade, de todos e todas na escola e a oferta de uma educação libertadora, que contribua para a (re) construção de uma análise crítica do mundo e o desenvolvimento pleno da cidadania pelos educandos, em vias da emancipação desses mesmos sujeitos, como sujeitos de direitos, em um sentido amplo.
* Educador na EJA na Rede Municipal de Educação de Contagem e Mestre em Educação de Jovens e Adultos pelo Promestre/FaE/UFMG.
Imagem de destaque: Marcello Casal Jr./ Agência Brasil https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php https://www.zp-pdl.com