Editorial da edição 291 do Jornal Pensar a Educação em Pauta
No Brasil, até o momento, temos mais de 130 mil mortes pela pandemia provocada pela Covid-19. Nunca tivemos uma tragédia dessa magnitude. Todos os mortos, todas as mortas, são pessoas que têm nome, família, endereço. Deixam, portanto, a dor, o vazio e a angústia, pais e mães, irmãs e irmãos, companheiros e companheiras, filhos e filhas, amigos e amigas. São 130 mil lutos!
Diante da uma tragédia humanitária deste tamanho, há sempre que se recordar que cada um e cada uma que perdeu um ente querido merece nossa solidariedade e precisa, muitas vezes, acompanhamento para que possa elaborar o luto. Certamente, em situações como a que vivemos hoje, mais do que em outras, é fundamental que a situação de luto e a necessidade de sua elaboração não sejam vistas como um problema pessoal ou individual apenas; elas são coletivas e societárias.
Mesmo que cada pessoa e que cada família precise e deva elaborar o seu luto pela perda de um ente querido, buscando transformá-lo em memória a respeito daquele ou daquela que morreu, nas circunstâncias atuais há outro elemento que não apenas o número demortos e a generalização das perdas de vidas humanas que nos obrigam a pensar coletivamente sobre o tema. É a necessidade de fazer com que a memória coletiva não consagre como verdadeiras as visões sobre a pandemia que interessa àqueles que, por ação ou omissão, foram os responsáveis por milhares de vidas perdidas.
Os dados sobre o número de casos e as mortes devido à pandemia, no Brasil e no mundo, são eloquentes para demonstrar que há alguma coisa muito errada no Brasil. Enquanto a população brasileira representa apenas 2,7% da população mundial, o número de casos aqui representa mais de 15% daqueles que ocorrem no globo e as mortes batem também em assustadores 14,3% daquelas que ocorreram até o momento no planeta. Do mesmo modo, os dados sobre as mortes no Brasil demonstram, também, que a população negra e pobre é muito mais impactada do que os demais grupos sociais e raciais. Em alguns casos, a combinação destes dois fatores pode elevar em 2, 3 ou 4 vezes a chance de a pessoa vir a morrer devido à Covid-19.
É triste essa realidade brasileira e isto tem que nos fazer perguntar, e buscar, responder as razões da peculiar, perversa e triste situação no país. Essa situação não pode ser dissociada do aprofundamento das já vergonhosas desigualdades brasileiras devido às políticas adotadas, sobretudo, pelos grupos que organizaram e promoveram o Golpe de 2016 contra a Presidenta Dilma Roussef e se associaram ao capital internacional para dilapidar as riquezas nacionais e massacrar o seu povo.
No entanto, de forma mais direta, o tamanho da nossa tragédia mantém relação com as políticas equivocadas e genocidas adotadas pelo Governo Federal no enfrentamento da pandemia. Em praticamente todas as suas ações o Governo Bolsonaro tem sido não apenas irresponsável e obscurantista, mas tem feito da morte da população mais pobre uma meta das políticas de Estado. As mortes provocadas pelas políticas bolsonaristas não são fruto de ações equivocadas, elas são a razão mesmo dessas políticas.
Não podemos, pois, deixar que se construa uma memória sobre a pandemia dizendo que ela foi, no Brasil, uma tragédia provocada por um vírus desconhecido. Não, não foi apenas por isso. É preciso nunca esquecer. Ela não se deve também à negligência da população, ainda que muito devamos falar sobre isso. Ela não é democrática e não atinge igualmente a todos e a todas.
É preciso dizer, é preciso falar, é preciso elaborar uma memória que não transforme as vítimas em algozes, como tem sido muito comum nas políticas adotadas pelo governo Bolsonaro e defendida pelos seus apoiadores. É preciso deixar os nossos mortos e as nossas mortas em paz e, para isso, é preciso fazer justiça a eles e a elas. Eles e elas, e todos nós que os saudamos e compadecemos com suas mortes, merecemos uma memória justa e verdadeira. Esta também tem que ser uma das razões da transformação de nosso luto em memória.
Imagem de destaque: Performance ‘Quem partiu é amor de alguém’. Foto: Leopoldo Silva