Memórias da vida universitária: Ricardo Crisorio

Alexandre Fernandez Vaz

Quando penso nas movimentadas duas últimas décadas de minha vida, surge amiúde a figura de um dos raros amigos que pude fazer na vida universitária. É Ricardo Crisorio, e a notícia de que chegou o momento de sua esperada aposentadoria da Universidad Nacional de La Plata, República Argentina, me pega, paradoxalmente, de surpresa. Um pouco desconcertado, reviso na memória um pontilhado de encontros que, no entanto, configuram uma linha contínua: estivemos juntos nesses anos todos em lugares muito diferentes entre si, cada ocasião por um tempo igualmente variado, mas em cada uma delas renovamos nossas obsessões intelectuais, observações sobre o que fosse e, principalmente, a amizade.

Foi numa tarde de domingo, 22 de setembro de 2002, que pela primeira vez encontrei Ricardo. Estávamos no aeroporto de Vitória, Espírito Santo, em cuja Universidade Federal desenvolveríamos, com colegas argentinos e brasileiros, um intenso seminário de uma semana. Meses antes eu recebera um telefonema de Valter Bracht, professor da UFES, que me convidava para o encontro que, se tudo desse certo, seria apoiado pelo CNPq por meio de um edital de fomento a atividades com pesquisadores de outros países da América do Sul. Tratava-se, naquele momento, de analisar um conjunto de temas que deveriam configurar um balanço da Educação Física na Argentina e no Brasil, projeto cuja coordenação seria compartilhada por Ricardo e Valter. Uma segunda etapa seria realizada em La Plata, cidade de onde vinham os parceiros argentinos. Nós, do Brasil, éramos oriundos de diversas instituições. Dos seminários saíram os esboços dos capítulos do livro que Ricardo e Valter organizavam, com publicação simultânea no Brasil e na Argentina. Devo àquele projeto, além das boas experiências intelectuais, meu primeiro retorno à Argentina, um país da minha infância, depois de décadas de ausência; devo a ele, ademais, o começo de outra amizade muito importante, a com Marcus Taborda de Oliveira.

Em Caxambu, no ano seguinte, reencontrei Ricardo no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, e ele, para minha surpresa, convidou-me para um evento que se realizaria em seu país natal. O inesperado ficou por conta das diferenças argumentativas que tivéramos, algo que a maturidade de meu amigo tomou como sinal de potência do debate, e não, como é costumeiro na vida universitária, incômodo a ser evitado. De lá para cá, temos realizado muitas atividades, o que inclui orientações e aulas em pós-graduação, seminários, pesquisas e debates. Falta-nos ainda o texto conjunto. É tempo para ele.

Interessado na educação do corpo e no desenvolvimento de uma teoria para ela, Ricardo tem no livro El cuerpo, entre Homero y Platón um ponto de síntese dessa empreitada que o ocupa há longos anos – mesmo que com mudanças de rota, as que o trabalho intelectual, confrontado com a empiria, demanda. Se o corpo no Ocidente é mais homérico que platônico, porque fragmentado, o olhar é lançado a ele por meio de uma interpretação inspirada em Jacques Lacan: o corporal (que pode ser educado) se materializa, na prática, como efeito da linguagem. Não é nada desprezível, tampouco isento de consequências para a educação, o que o Professor Titular da UNLP vem propondo. E é nesse sentido que vai uma de suas criações, a de um mestrado em Educação Corporal, correspondendo à crítica à Educação Física e a tudo o que ela expressa de uma tradição que, no interior de si mesma, precisaria ser superada.

Quando o conheci, Ricardo era Vice-diretor da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da UNLP, cargo que exerceu em duas oportunidades. Não deixa de chamar a atenção que um intelectual com impulsos iconoclastas tenha desenvolvido uma carreira tão institucional, assumindo cargos administrativos, criando e coordenando grupos de pesquisa e revistas acadêmicas, participando de congressos e ministrando cursos por toda a Argentina e em países vizinhos. Suponho que a cumplicidade entre esses dois movimentos se dê pela confiança que ele sempre teve na Universidade como ente de Estado e, mais que isso, como lugar em que a sociedade pode pensar – no melhor dos casos, livremente – a si mesma.

De Ricardo sempre esperamos muito, e há motivos para isso. Não será diferente agora, quando deixa formalmente a Universidade, mas nela permanece com o que tem de melhor: o pensamento. Parabéns, meu amigo.

Para saber mais
CRISORIO, Ricardo. El cuerpo, entre Homero y Platón. Buenos Aires: Biblos, 2017. 245 p.

BRACHT, Valter; CRISORIO, Ricardo (Org.). A Educação Física no Brasil e na Argentina: identidade, desafios e perspectivas. Campinas: Autores Associados, 2003. 368 p.


Imagem de destaque: Capa do livro El cuerpo, entre Homero y Platón.

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