Documentos de barbárie como cultura: qual espaço resta para a Educação?

Luciano Mendes de Faria Filho

Reflexões sobre o Circuito Cultural da Praça da Liberdade/BH.

Numa das mais famosas passagens das reflexões do filósofo alemão Walter Benjamin, ele dizia que “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.” Ainda que eu não goste da ideia da barbárie para dizer do “outro” da cultura, já que historicamente a ideia foi mobilizada contra “outros” bem específicos – aqueles e aquelas que não se adequaram ao figurino europeu –, a palavra também tem sido mobilizada para dizer das atrocidades praticadas pelos humanos de todos os quadrantes. Em Benjamin, a barbárie dirige-se, dentre outras situações, à guerra ou para nomear as faces mais perversas e obscuras do humano.

Todo este preâmbulo é para dizer de um incômodo, de um mal-estar e de uma decisão pessoal. Outro dia, convidado por amiges, fui assistir a um show no Museu das Minas e do Metal, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Como se sabe, é um espaço cultural mantido pela Gerdau e, mais do que isso, para mim, um museu que tomou o lugar de um outro espaço de cultura que ali já existia: o Museu da Escola.

Como já tive ocasião de falar e escrever, a expulsão do Museu da Escola da Praça da Liberdade para dar um espaço que faz loas aos “cascalhos e pedregulhos” remete-nos a algo fundante da sociedade brasileira: a falta de espaço, nestes circuitos pensados e projetados pelas e para as camadas médias intelectualizadas, para as instituições públicas  mais capilares e  representativas da população mais pobre, no caso a escola pública. Nunca é demais lembrar, neste sentido, que,  ironicamente, o prédio que abriga o tal museu da Gerdau foi a sede, justamente, da Secretaria da Educação!

O meu mal-estar, no entanto, não é apenas por isso. É que, ao adentrar ao Museu, o que vemos é um conjunto de imagens e de mensagens que faz loas ao conjunto de benesses que a mineração e o metal fazem para a humanidade. As imagens são eloquentes e em momento algum são mentirosas. No entanto, o problema é que só há isso! Nada de destruição das vidas que habitavam os territórios minerados, nada de barragens, nada de mortes, nada de ocupação violenta e predatória dos territórios, nada de comprometimento dos mananciais… nada que trouxesse, no mínimo, o contraditório para a narrativa.

Ou seja, num espaço público cedido a uma empresa privada para administrar toda a história das imensas contradições da mineração nas terras mineiras, no Brasil e no mundo, é simplesmente ignorada, jogada para debaixo do tapete para dar lugar a uma narrativa  límpida como o aço produzido pela Gerdau e tantas outras mineradoras pelo mundão a fora e as  suas contribuições à civilização humana.

Como política de memória, o Museu das Minas e do Metal funciona como uma realização máxima da utopia capitalista: transforma a barbárie em “alta cultura” e a vende como sendo uma benesse do capital à população. Ganha-se de todos os modos, de todos os lados e de todas as maneiras. Mas, quem perde?

Eu imagino que outras pessoas sintam, como eu, um mal-estar quando entra no Museu e em outros espaços do chamado Circuito Cultural da Praça da Liberdade. E isso não é por acaso e nem uma novidade. Desde o seu início, o circuito foi muito controverso. No que diz respeito à expulsão do Museu da Escola da Praça, por exemplo, houve reação, debates, mobilização de pesquisadores/as brasileiros/as e de fora do país. Houve matérias na imprensa até que… como era comum naquele momento em Minas Gerais sob o comando de Aécio Neves et caterva, os donos do poder calaram os/as profissionais da imprensa que denunciavam a destruição em curso  e nos calaram definitivamente na imprensa mineira.

Na impossibilidade, pelo menos por enquanto, de retomarmos essa história, por um lado, e para fazer cessar esse mal estar, a decisão pessoal que tomei é a de me recusar doravante a entrar no museu até que, de fato e de direito, consigamos ter espaços e políticas de cultura que integrem as diversas narrativas diversas que presidem os  processos humanos e que, sobretudo, que sejam políticas e espaços que celebrem as vidas humanas e não humanas que habitam os territórios e não façam loas à morte! Enquanto isso, a luta continua para banir do mundo todas as formas de opressão e de destruição, ainda que sejam embaladas pelas  mais belas imagens do mundo!


Imagem de destaque: Galeria de imagens

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