“Leia para mim” – Aleluia Heringer Lisboa Teixeira

“Leia para mim”

Aleluia Heringer Lisboa Teixeira

Crianças do nosso Brasil não acessam a escola da mesma forma, pois temos escolas para ricos e para pobres. Esta dura realidade, que já conhecíamos, ganhou números no resultado do ENEM de 2013, onde 97,6% das 500 maiores médias nas provas objetivas do Enem estão nas escolas com nível socioeconômico alto ou muito alto. Será que só rico aprende? Ou os “filhos deste solo” não recebem a mesma atenção e cuidado de sua “mãe gentil”? De um lado, crianças e jovens bem alimentadas e com tudo que é necessário para estudar, enquanto outras, com o estômago vazio e com todo tipo de carência, relacionam a escola com a possibilidade de se fazer a única refeição daquele dia. Neste Brasil, pensar a educação é pensar nessas desigualdades que definem, já na infância, o lugar de cada um. Desigualdades materiais e de acesso aos bens culturais, entre tantas outras que, não só separam, mas sangram com seus cortes profundos, criando grandes obstáculos nos destinos do João e da Maria.

Sem desconsiderar esse quadro e as inúmeras variáveis que interferem na trajetória escolar de uma criança e jovem, mas também não permitindo que tal realidade nos paralise, afinal não é somente isso, sigamos em frente. O que está ao nosso alcance e que podemos fazer por nossos filhos?

Para as crianças não servem os conselhos, entretanto seus olhos captam o exemplo dos pais e dos adultos de sua comunidade. Alimentam seus espíritos com aquilo que é valor e virtude e assim vão elaborando, adquirindo e formando suas primeiras referências de mundo.

Enquanto escrevo este texto, escuto o CD de Baden Powell & Filhos, este que foi um dos maiores violonistas de todos os tempos e um dos compositores mais expressivos da música brasileira. Filho de sapateiro e músico amador, Baden (1937 – 2000) descobriu a música brincando com o violino de seu pai. Seus dois filhos Phillippe (piano) e Louis (violão) estavam com 16 e 12 anos, respectivamente, quando este CD foi gravado em 1994. Tocam maravilhosamente bem! Estamos falando de uma inserção precoce no mundo da música que definiu o rumo de Baden, como também de seus filhos. Assim também é com tantos filhos e filhas do Brasil que se inspiram, para o bem ou para o mal, em seus pais.

Lembro-me de, quando criança, presenciar diversas vezes meu pai lendo ou escrevendo em sua escrivaninha. As prateleiras de livros iam até o teto. Assim como na história “João e o Pé de Feijão”, na minha cabeça de criança, não era o pé de feijão, mas os livros que chegavam ao céu. Esses e tantos gestos da rotina da casa ou modos de ser dos meus pais deixaram no meu campo de visão, à altura de minhas mãos, e no alcance dos meus ouvidos, imagens, ações, objetos e palavras. Isso é denominado pelo sociólogo Bourdieu como “o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos”, ou, em outras palavras, o capital cultural familiar. Digo sem duvidar que esse capital cultural familiar, supriu em grande parte aquilo que as fracas escolas por onde passei não me ofereceram.

Em nossa pesquisa realizada sobre a composição da elite escolar do Colégio Estadual de Minas Gerais (no período de 1956-1964), escola referência em Minas desde 1890, foi possível identificar, nos depoimentos de vários ex-alunos, que era grande a expectativa que a família depositava no estudo e na escola. São diversos depoimentos que remetem nossa atenção para as condições criadas no ambiente familiar e como se processava essa transmissão doméstica do capital cultural. Destaco dois trechos que considero significativos: “Minha mãe lia para a gente Monteiro Lobato, um capítulo a cada noite, e lia livrinhos em espanhol, para criança mesmo. A casa era cheia de livros para todos os lados. Esse negócio de ter que estudar em uma boa escola é porque mamãe não pôde estudar” (Maria, ex-aluna). Ou então: “Meus pais tinham uma formação escolar de nível médio. Eles não fizeram curso superior. Papai era um burocrata da Secretaria de Educação muito bem formado, mas ele era requintado em termos de literatura, em termos de música, em termos de poesia, em termos de cultura, de elementos culturais” (Mateus, ex-aluno).

O que se percebe, nesses e em outros depoimentos, é a identificação de uma rotina e de uma ambiência familiar pautada na valorização daquilo que favorecia o conhecimento, as artes e o estudo. Também é notável como esse capital era transmitido nas práticas socializadoras desde a mais tenra idade, expresso nas ações diárias e constantes, tais como: a leitura realizada pela mãe no momento de dormir; a lembrança da casa cheia de livros; do pai que unia a família em torno do piano; daquele que lia livros ou jornais diariamente; da mãe que sempre dizia: “minha filha, vai estudar”; o incentivo ao autodidatismo; entre outras práticas que em longo prazo agregavam valor aos seus portadores.

Mesmo entre aqueles com menor recurso material, o conhecimento e o estudo eram considerados como valor; dessa forma, investia-se com afinco na educação dos filhos. Deparamo-nos com famílias que criavam, portanto, desde cedo, uma disposição nos seus filhos para o estudo e a disciplina da vida acadêmica, o que facilitava o trabalho dos professores que representavam os alunos como sendo “meninos privilegiados que já chegavam à aula estimulados para leitura, estimulados para tudo”, conforme depoimento de uma ex-professora.

Também o Pisa – Programme for International Student Assessment (Pisa) – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes incluiu, em 2009, um questionário sobre os pais, isso porque havia uma percepção de que o ambiente doméstico de um estudante afetava em muito suas notas. Treze países aceitaram essa inclusão, e, dos estudantes que fizeram o teste, 5 mil levaram para casa um questionário a ser respondido pelos pais, com perguntas sobre como tinham criado os filhos e sobre como participaram de sua educação, desde quando estes ainda eram bem pequenos. O estudo concluiu que alguns esforços dos pais geravam grandes retornos. Segundo descrito no livro “As crianças mais inteligentes do mundo”, no mundo inteiro, “pais que liam todo dia ou quase todo dia para os filhos pequenos os viam se tornarem alunos – quando chegava à faixa dos quinze anos de idade com desempenho bem melhor em leitura”.

O que seria ler para os filhos? queriam saber os pesquisadores: ensinar as crianças sobre o mundo – compartilhar histórias; fazer perguntas sobre os livros, perguntas que instigavam as crianças a pensar por conta própria; enviar a elas uma mensagem acerca da importância não apenas da leitura, mas de aprender sobre todo tipo de coisas novas. Além disso, em todos os países participantes, os pais que conversavam com seus filhos sobre filmes, livros e atualidades estavam criando adolescentes que se saíam melhor em leitura. Mais uma vez, os pais que envolviam os filhos em conversas sobre temas complexos ou avançados para sua idade estavam essencialmente ensinando-os a se tornarem adultos pensantes.

Os pais podem e devem oferecer aos seus filhos o maior investimento e deixar para eles a grande herança que é: ler para eles. Aquele momento de afeto e aconchego que abre as portas da imaginação, da ampliação do vocabulário, das muitas perguntas e que descreve mundos reais e imaginários. Por eles: desliguem a televisão, esqueçam seus celulares e leiam para os seus filhos, não como um exercício, mas como uma experiência de amor.

 

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