Maria Mortatti
O dramaturgo e poeta português Gil Vicente (c.1465 – c.1536) viveu no período entre a Idade Média e o Renascimento, marcado por grandes transformações políticas, sociais, culturais e artísticas na Europa e inspirado na Antiguidade Clássica. Sua obra, porém, incorpora características da tradição medieval, como a cultura popular e religiosa, em forma de sátira contundente a todos os tipos da sociedade da época, abrangendo temas universais. Entre 1502 e 1536, escreveu mais de 40 peças de diferentes tipos, como autos, farsas, comédias, além da poesia influenciada por temas e formas da lírica trovadoresca medieval e palaciana. Sua obra-prima é a “trilogia das barcas”: Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Barca do Purgatório (1518), Auto da Barca da Glória (1519). Apreciado já em sua época por escritores e filósofos, Gil Vicente se tornou figura de destaque da literatura portuguesa. Sua obra completa foi compilada postumamente pelos filhos e editada em 1562. A segunda edição foi publicada em 1586, com trechos censurados por autoridades da Inquisição. Em 1834, Gil Vicente foi “redescoberto” com a publicação pela Editora Langhoff, de Hamburgo, Alemanha, de Obras de Gil Vicente – correctas e emendadas pelo cuidado e diligencia de J.V. Barreto Feio e J.C. Monteiro.
Foi mais ou menos com essas informações extraídas de livros de história de literatura portuguesa e estudos sobre a obra do poeta, que, no ano de 1988, apresentei Gil Vicente aos alunos da disciplina Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Portuguesa que eu lecionava no 2º. grau de ensino (hoje, ensino médio) em colégio particular da cidade de Campinas – SP. Comentei sobre minha admiração pela obra do “pai do teatro português”, desde que a conheci como estudante do curso de Letras, e destaquei minha predileção pelo Auto da Barca do Inferno, encenado pela primeira vez 471 anos antes daquela aula e que continuava atualíssimo. Mostrei-lhes meu exemplar do livro, em edição de bolso da Europa-América. Expliquei que “auto” é uma composição teatral, característica da Idade Média ibérica, com linguagem simples, breve extensão, com personagens representando virtudes e pecados humanos e predomínio de elementos cômicos e satíricos com objetivos moralizantes, algo como a máxima “ridendo castigat mores” (“rindo corrigem-se os costumes”) – criada pelo poeta francês Jean de Santeuil (1630 – 1697). E resumi o conteúdo: num porto imaginário, aguardando as almas para a passagem ao outro mundo, estão duas barcas e respectivos barqueiros: a do Inferno, com o Diabo e o seu companheiro, e a da Glória, com um Anjo na proa. Os personagens que se apresentam para julgamento representam tipos da época, como nobres, agiotas, frades, alcoviteiras, altos funcionários da Justiça, além de quatro cavaleiros que morreram na luta pela fé cristã e Joane, o parvo. A maioria vai para a barca do Inferno, como punição pelos pecados cometidos durante a vida, salvando-se apenas os quatro cavaleiros e o parvo.
Li alguns trechos mais cômicos e propus que eles mesmos lessem e analisassem o auto. Alguns reclamaram, mas acabaram se convencendo com meus argumentos de leitora apaixonada. Um deles, porém, mostrou-se reticente. Era um adolescente muito bonito — alto, moreno, inteligente, sensível, bem falante —, filho de um grande empresário de multinacional holandesa. Não convenciam meus argumentos sobre a importância — para sua época e para o presente — da obra do dramaturgo português. Tentei por vias mais pragmáticas. Não se pode não gostar do que não se conhece. Além disso, era livro exigido em exames vestibulares etc. Em vão. Cada vez mais convicto de sua opinião e já cansado de me ouvir, ele teve um ataque de revolta e fúria. Levantou-se de supetão, chutou as carteiras vizinhas e, gritando desaforos, ameaçou jogar uma delas em minha direção. Ia me denunciar para o diretor da escola. Odiava essas velharias. Não era obrigado a ler e fazer o trabalho. E não tinha motivos para se preocupar com vestibular. Seguiria a carreira do pai.
Eu e seus colegas ficamos assustados. Juntos, conseguimos acalmá-lo. Mas não desisti dele. Consultei a turma: “Concordam que ele não faça o trabalho?”. A maioria achou injusto. Ou todos, ou nenhum. Se o trabalho era em grupos, ele tinha de participar. Para resolver o impasse, propus um desafio: ele leria o livro e faria trabalho individual com o objetivo de verificar se sua opinião se sustentava e, nesse caso, demonstrá-la com argumentos fundamentados na leitura do texto. Aceitou. Foi um dos melhores trabalhos daquela turma. Escrito com paixão e depois de muita pesquisa. Comprovou, triunfante, seu principal argumento: por que considerava que Gil Vicente e Auto da Barca do Inferno eram inadequados para jovens. Os colegas não concordaram com ele. Foi um bom debate. Acabamos protagonizando, nós mesmos, a encenação em sala de aula de um auto muito atual. E, por fim, Gil Vicente venceu: foi lido!
Ele pediu desculpas pela reação furiosa daquele dia e me agradeceu por ter lido o livro. Também agradeci pelo que ele me ensinou. E recordei a todos: gostar ou não de um texto literário é um direito, mas de quem o lê. “Não li e não gostei” talvez seja aceitável apenas como antológica expressão utilizada pelo escritor modernista Oswald de Andrade em referência a um de seus desafetos, o escritor regionalista José Lins do Rego. E ambos continuam na barca da glória literária.
Sobre a autora
Maria Mortatti é poeta, escritora e professora titular na Universidade Estadual Paulista – campus de Marília. É graduada em Letras, mestre e doutora em Educação. É líder do Grupo de Pesquisa História da Educação e do Ensino de Língua e literatura no Brasil e Presidente Emérita da ABAlf – Associação Brasileira de Alfabetização. É autora ou coautora de dezenas de publicações entre livros, capítulos, ensaios e artigos científicos e também autora de livros de poemas e contos. Recebeu o 54º. Prêmio Jabuti – Educação (CBL), em 2012, com o livro Alfabetização no Brasil: uma história de sua história.
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