Carlos Bao
Por incrível que pareça, ainda é muito difícil e complicado falar sobre gênero e sexualidade numa cidade pequena do interior. Talvez não em todas as cidades do Brasil, mas a experiência aqui relatada, vem de Venda Nova do Imigrante, uma cidade do interior do Espírito Santo, com pouco mais de 26 mil habitantes. Um local onde a mentalidade é predominantemente conservadora e onde o aspecto religioso povoa a vida de quase a totalidade dos munícipes. Por aqui, assuntos acerca de gênero e sexualidade são sempre tabus, nunca trazidos à luz e poucas vezes debatidos.
Em 2010 foi inaugurado na cidade um campus do IFES (Instituto Federal do Espírito Santo) e muito do que aconteceu na região em termos de progresso tange, em algum momento, esta instituição. Dentre todos os núcleos existentes na instituição e sob muitos obstáculos, foi implantado em junho de 2021 o NEPGENS (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade). Em concordância com as diretrizes e legislações educacionais mais atuais, este núcleo se propõe a sensibilizar as pessoas sobre a importância de a escola ser um espaço aberto para acolher e apoiar todas as manifestações de gênero e expressões de sexualidade, bem como fomentar a construção de uma educação inclusiva e não sexista, que busque a igualdade e equidade entre todos.
Na prática, o campo de abrangência ultrapassa as teorizações e abarca questões reais sobre estudantes que interrompem os estudos por causa de bullying ou gravidez na adolescência; pessoas que vivem relacionamentos abusivos; sobre a diversidade de violências sofridas, diariamente, por meninas e mulheres; sobre meninos e homens que mergulham em profundo sofrimento por vivenciarem uma masculinidade extremamente tóxica.
Por motivos inerentes a uma cidade como Venda Nova do Imigrante, tocar nesses assuntos é sempre um processo que enfrenta resistências, seja dentro do IFES, junto aos servidores e estudantes, ou mesmo na comunidade externa, principalmente por parte dos responsáveis legais de estudantes – na maioria adolescentes. Assim, educar as pessoas sobre gênero e sexualidade requer uma desconstrução que precisa começar, por vezes, de fora da instituição para dentro.
Durante a implantação do NEPGENS no IFES Campus Venda Nova do Imigrante, muitos servidores e estudantes da instituição se colocaram à disposição. Porém, o ponto de virada mais significativo foi a participação maciça de membros da comunidade externa, profissionais liberais, servidores públicos da Prefeitura Municipal e comunidade LGBTQIAPN+ da cidade. Foram os membros externos que deram capilaridade ao projeto e fizeram com que a ideia ganhasse a adesão de uma boa parcela dos vendanovenses.
Como diz o provérbio, popularizado nos quadrinhos do Homem Aranha, “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. O NEPGENS ganhou corpo e começou seus trabalhos com bastante entusiasmo, gerando ações e formações pontuais para os servidores da Prefeitura Municipal e para os próprios servidores e estudantes. Acontece que, em junho de 2022, um evento que deveria ser apenas mais uma atividade do núcleo, se tornou motivo de ataques ao IFES, principalmente por cidadãos e políticos conservadores, majoritariamente mal intencionados, que queriam usar a oportunidade para fins eleitoreiros. Vídeos repletos de inverdades sobre o evento, proposta para lei municipal descabida e preconceituosa, além de falatórios desinformados tomaram conta da cidade e dos municípios vizinhos. Foi um evento técnico, que discutiu as políticas públicas voltadas para a comunidade LGBTQIAPN+, com apoio da Prefeitura Municipal e palestras da Secretária Estadual de Direitos Humanos, juntamente com representantes de importantes associações capixabas. Como a ética, o bom senso e o respaldo na legalidade são premissas compartilhadas pelo NEPGENS e pelo próprio IFES, as acusações e os ataques acabaram se mostrando infundados e sem propósito, gerando uma repercussão superpositiva para o evento. A expectativa de público triplicou e o núcleo ganhou uma projeção infinitamente maior do que se esperava.
Instaurou-se um outro momento no município de Venda Nova do Imigrante e o NEPGENS, bem como o que ele representa, tomou um outro lugar no imaginário coletivo. As pessoas que outrora atacaram o IFES e, consequentemente o núcleo, participaram do evento e fizeram o mea culpa. A Prefeitura Municipal, por recomendação do Ministério Público, implantou a Comissão de Diversidade Sexual e Identidade de Gênero, formada por servidores públicos, dentro da própria prefeitura. Convites para novas formações e capacitações de servidores públicos das secretarias de assistência social, educação e saúde – inclusive de outros municípios- começaram a surgir, espontaneamente. As demandas explodiram e o NEPGENS do IFES Venda Nova do Imigrante começa a se tornar uma referência, tanto dentro da instituição, em nível estadual, quanto na comunidade externa.
Os diálogos sobre questões de gênero e sexualidade, mesmo após todos esses episódios, ainda encontram grande resistência. Entretanto, a informação consistente e aberta em espaços de discussão ainda é um dos melhores caminhos para educar e desconstruir preconceitos. O NEPGENS, em suas formações junto à comunidade externa, tem se deparado com uma infinidade de questionamentos legítimos que, ao serem respondidos, com poucas explicações, já não se apresentam tão complexos. Tudo fica mais palatável e acessível, o que leva a conversa para uma esfera mais ampla e profunda. E, mesmo quando a audiência não se mostra tão aberta, só de estar ali colocando esses temas, já é possível perceber que uma pequena, porém importante barreira, foi derrubada.
A aceitação da ideia de que temas como a sexualidade e gênero permeiam as nossas relações em diversos âmbitos, desde o núcleo familiar, o trabalho, a educação e as relações sociais como um todo, ainda é um projeto de longo prazo. Mas é possível. Introduzir esses debates no cotidiano das pessoas, de forma leve e simplificada, com menos academicismos e numa linguagem acessível, oferecendo espaços para erros e acertos, dando tempo para dúvidas e reflexões, pode ser um bom caminho para uma educação menos impositiva e com mais nuances de acolhimento e humanidade.
Sobre o autor
Carlos é designer gráfico, membro voluntário da comunidade e coordenador adjunto do NEPGENS do IFES Campus Venda Nova do Imigrante, Espírito Santo.
Para saber mais
O NEPGENS Venda Nova do Imigrante é formado por servidores do IFES Campus Venda Nova do Imigrante, estudantes do ensino médio e da graduação, bem como por membros voluntários da comunidade externa.
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