Gênero e raça no PNLD: como é que a gente fica?

Mariana Alves de Sousa¹

Apesar dos desafios enfrentados pelas(os) profissionais e estudantes da educação básica de instituições públicas na pandemia da covid-19, o início do ano letivo de 2021 foi marcado pela escolha dos livros didáticos para o Ensino Médio a partir do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Esta edição do programa e os livros escolhidos pelas(os) professoras(es) de cada instituição e sua respectiva área, terão a vigência de quatro anos.

Em diálogo com algumas/alguns professoras(es), foi possível perceber que a atual edição do PNLD representa um retrocesso educacional e político. Baseado na proposta de competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a qual propõe um “novo ensino médio” que homogeneíza as disciplinas específicas em grandes áreas, com enfoque na formação para o mercado de trabalho, os livros de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas não apresentam nenhuma perspectiva de conteúdo para as discussões de raça e gênero no Ensino Médio.

Nesse sentido, vale lembrar que a colonialidade enquanto forma de poder que estabelece padrões de conhecimento e existência hegemônicos baseados no eurocentrismo, na branquitude e no cisheteropatriarcado em favor do capital e seu mercado, tem princípios análogos ao apagamento das diversidades, principalmente das que se remetem aos sujeitos dissidentes. Tal homogeneização tem a capacidade de atingir as áreas básicas da vida social, dentre elas a educação formal, a qual se constitui no espaço escolar, que representa um dos contextos primordiais em termos de formação social e identitária desses sujeitos. Portanto, o projeto da base nacional curricular é comum a quem? 

Com base nas potentes críticas à colonialidade de gênero, o sexo e o gênero representam interpretações culturais, assim como a raça que surgiu como classificação dos colonos para estabelecer o engodo de sua superioridade sobre os povos dissidentes. Nessa perspectiva, o gênero representa uma  espécie de “ficção” com poder de imposição para inferiorizar tanto os homens, quanto as mulheres não-brancas e a população LGBTQIA+ em todas as áreas da existência. Portanto, a base nacional parece comum apenas ao projeto de manutenção do poder colonial moderno. 

Os “projetos integradores” dos livros didáticos que substituem os pressupostos metodológicos de disciplinas como Filosofia, Sociologia, Geografia e História, que possibilitariam que as(os) estudantes construíssem um conhecimento crítico acerca das categorias de raça e gênero, não demonstram comprometimento com o princípio democrático da educação, tampouco ao que se refere às questões tangentes à realidade dos grupos ideologicamente menos poderosos que, estruturalmente, também são a população mais vulnerabilizada economicamente. 

Diante das ameaças às políticas educacionais e do princípio emancipador da educação, é válido rememorar a expoente intérprete do Brasil Lélia Gonzalez acerca do questionamento: “cumé que a gente fica?” Adaptando o texto da autora: foi então que uns secretários legais convidaram a gente pra festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro pra gente, falavam da gente com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados. A gente foi sentar lá na mesa, mas não tinha lugar, então nos sentamos atrás deles. Se apertasse um pouco, até daria um espacinho pra gente sentar juntos, mas estavam todos muito ocupados com a implantação do novo ensino médio, com a escola formadora para o mercado de trabalho… Foi até que a neguinha que tava sentada atrás da gente deu uma de atrevida e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo. Tá na cara que os secretários ficaram brancos de raiva e com razão. Mas eles sabiam da gente mais que a gente mesmo? Se tavam ali, na maior boa vontade, oferecendo um monte de livro pra gente, projeto de vida e tudo mais… Teve uma hora que não deu pra aguentar aquela zoada toda. E afinal, de quem é a culpa? Dessas(es) estudantes e professoras(es) vitimistas, ora. Já não bastavam as cotas, agora querem ter representação em livro didático também.

É importante refletirmos criticamente sobre nossas práticas e saberes enquanto educadoras e educadores para que possamos retroalimentar contrapartidas a essas propostas que, sorrateiramente, servem às demandas  hegemônicas e contribuem para o apagamento da nossa (re)existência e de diversas(os) estudantes enquanto sujeitos, em favor do projeto neoliberal de atribuir à escola o sentido mercadológico. Se o programa do livro didático e a base curricular não é mais comum a nós, que sejamos incomum a eles e pautemos projetos de currículos decoloniais. 

 

1Graduada em Ciências Sociais (UFU), mestra em Sociologia (ProfSocio/UNESP), doutoranda em Educação (PPGE – UNESP/Marília). Professora de Sociologia contratada pelo Estado de Minas Gerais. Atualmente integra o grupo de pesquisa PsiCUqueer – Psicologias, coletivos e culturas queer. E-mail: ma.sousa@unesp.br.

 

Para saber mais: 

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje. Anpocs, 1984, p. 223-244. 


Imagem de destaque: Pixy

 

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