“Nenhum passo atrás, ditadura nunca mais!”

Ruan Debian¹

Os ventos gélidos de março de 1964 trouxeram para o Brasil uma nefasta tempestade que, lamentavelmente, perdurou por longos e dolorosos 21 anos. “Comunista!”, era o termo, visto como “xingamento”, esbravejado pela cúpula militar para todos aqueles que eram contrários ao sistema ditatorial. Curiosamente, tal cenário remete ao inverno europeu de 1848, quando dois jovens revolucionários escreveram: “Qual partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de esquerda e de direita a pecha infamante de comunista?” (MARX, 2010, p. 39). Ou seja, adjetivar alguém por “comunista” fora a esfarrapada desculpa para legitimar as piores barbaridades cometidas nos porões do DOI-CODI. 

Em defesa de uma suposta liberdade, inimigos são criados e fomentados no imaginário popular. No Brasil pré-golpe de 64, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) se empenhou na construção de uma narrativa anticomunista e antigoulart. À guisa de comparação da função do IPES em espalhar mentiras, temos alguns programas atualmente sobre a história do Brasil que se se dizem “Paralelos” cujo protagonista é um astrólogo metido a filósofo, e não podemos nos esquecer do gabinete do ódio. Em síntese, fake news não é um fenômeno novo. 

Para compreendermos de forma mais sólida a atuação e a força ideológica que o IPES desempenhou, podemos rememorar os acontecimentos do dia 19 de março de 1964, em que aproximadamente 500 mil pessoas pararam São Paulo na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O órgão replicador de fake news dos anos 60 era composto por militares, intelectuais e principalmente empresários, que financiaram incontáveis grupos para atuarem diretamente com a população para legitimação do golpe. Dentre esses, a União Cívica Feminina que estava à frente da organização da passeata mencionada há pouco. A construção da narrativa golpista perpassou pelas publicações de livros, cursos, filmes o que contribuíram substancialmente para eleger deputados estaduais, federais e governadores na eleição de 1962. (SCHWARCZ & STARLING, 2015).

Mas quais são as consequências quando a burguesia resolve apoiar grupos extremistas? A extinção da liberdade do povo, direito básico de todo ser humano. Vejamos alguns poucos exemplos.

Embalados pelas comemorações golpistas após 31 de março, que ocorreram em várias cidades do país, a sede da União Nacional dos Estudantes ficou completamente destruída por um incêndio criminoso (BARROS, 1994). Os movimentos estudantis, que no tempo presente travam árduas lutas para defender a democracia e a ciência, não se abalaram e protagonizaram grandes manifestações durante o regime militar. Em contrapartida, as universidades passaram a ser foco de represálias e inumeráveis discentes e docentes foram presos e torturados. 

O assassinato do secundarista Edson Luiz numa manifestação no restaurante Calabouço causou comoção nacional. Em sua missa de sétimo dia, 15 padres deram as mãos formando uma corrente para garantir a saída em segurança dos fiéis da igreja. Apesar do apoio por parte considerável da Igreja Católica ao golpe, muitos de seus setores empenharam-se em denunciar internacionalmente as violações contínuas dos direitos humanos. Entretanto, nem todos aqueles que se levantaram dentro da igreja contra o regime conseguiram escapar de suas arbitrariedades sanguinárias, como foi o caso do padre Antônio Henrique Pereira Neto, auxiliar de dom Helder Câmara – referência na defesa dos Direitos Humanos – sequestrado e executado em Recife. (Schwarcz; Starling, 2015).

A tragédia social não era exclusividade dos centros urbanos. A situação era ainda mais mórbida longe dos holofotes da cidade. Sem sombra de dúvida, o requinte de crueldade deferido contra os índios por agentes do Estado e proprietários de terra deixariam com inveja qualquer carrasco da inquisição. Um documento produzido pelo próprio Estado em 1967 (encontrado apenas em 2013) registrou as horripilantes práticas de violência: matança de tribos inteiras, torturas, caçadas humanas, prostituição, propagação de varíola e doações de açúcar misturado estricnina (Schwarcz; Starling, 2015). 

Cabe ressaltar que não foram pontuadas aqui sequer um terço do que ocorreu nos anos entre 1964-1985 (as práticas de torturas etc.). Existe uma vasta literatura sobre a temática. Nosso objetivo é chamar a atenção para que os leitores interessados em se aprofundar no assunto evitem cair em novas narrativas golpistas pesquisando desse modo estudiosos conceituados, como Carlos Fico e Marco Napolitano. Claro, além dos já referenciados.

Por fim, diante do sinistro cenário exposto, questionamos o porquê de brasileiros e brasileiras desejarem fervorosamente pelo retorno da ditadura. Não conseguiremos dedicar a merecida atenção neste texto a essa resposta, mas frisamos que a elite possui um projeto respaldado em novos IPES para o país, como mencionado linhas acima. Quando vemos pessoas pauperizadas pelo sistema defendendo a lógica do próprio sistema devemos ter em mente que isso, infelizmente, é resultado de uma ação pensada e elaborada e não um mero acidente do acaso. Por isso, educadores populares, professores e professoras progressistas devem sempre frisar aos seus alunos: “Nenhum passo atrás, ditadura nunca mais!”.

1Educador popular e graduando em pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e membro do CDDH Betim.

 

Para saber mais: 

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BARROS, Luiz de. Os Governos Militares. São Paulo: Contexto, 1994.

MARX, Karl e ENGELS, Friederich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

BARROS, Luiz de. Os Governos Militares. São Paulo: Contexto, 1994.


Imagem de Destaque: Ruan Debian

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