Alfredo Johnson Rodríguez¹
O título desta coluna faz alusão à canção que o “cantautor” chileno Victor Jara (1932-1973) fizera célebre em 1971, como manifesto contra violência da “Guerra do Vietnã”. Curiosamente, esse tema poético-musical, numa versão renovada, se tornou emblemático nas intensas e amplas mobilizações políticas da sociedade civil que eclodiram no Chile, em outubro de 2019, tendo como protagonista coletivo o movimento estudantil.
Sem prejuízo das análises mais complexas, afirmaria que esse acontecimento notável, exprime a indignação da população chilena com o crescente aprofundamento das desigualdades socioeconômicas e da injustiça social, sistematicamente ativadas pelas instituições do Estado, em benefício e sob a tutela das elites econômicas. Em última instância, o povo ocupou as ruas para exigir que os governantes e suas aliadas, as corporações empresariais, garantam a todos/as o direito de viver e, mais ainda, de viver em paz, implementando urgentemente programas e políticas públicas de inclusão e bem-estar social, condizentes com o estado de direito democrático.
Talvez, a configuração social do Brasil esteja prestes a uma disrupção similar à do Chile, desde a deflagração da “Operação Lava Jato, em março de 2014, passando pelo Impeachment sem crime da Ex-Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, pela condenação sem provas do Ex-Presidente Lula, em 2018, pela controversa eleição de Bolsonaro, também em 2018, agravando-se nos últimos doze meses, desde que a pandemia do Coronavírus, atingiu também a população brasileira, o Brasil vivencia a pior tragédia de sua história.
Produto de uma confabulação infame costurada por setores que integram a direita oligárquica, a “nova direita”, as Forças Armadas e a elite empresarial, o Governo Bolsonaro, foi eleito sob o slogan da “nova política”, contanto, ainda, com o apoio maciço e cego de camadas sociais heterogêneas de eleitores/as, adeptos/as a preceitos e preconceitos conservadores.
Sob tais circunstâncias, o lema adotado pelo clã bolsonarista no governo faz jus à sua natureza política, na medida em que impõe à população seu autoritarismo e os interesses de seus patrocinadores valendo-se de métodos de persuasão e dominação que primem pelo uso e abuso da “violência simbólica”.
O regime veicula cotidianamente toda sorte de componentes discursivos e audiovisuais, através dos canais oficiais e alternativos da mídia. Esses conteúdos midiáticos insultam, escandalizam, ofendem e destilam ódio no público-alvo, tensionando a opinião pública e a oposição. O povo brasileiro tem se tornado, nesse contexto, um receptáculo de conteúdos contraditórios, mentiras, informações infundadas, notícias falsas, factóides, enfim das mais diversas formas de distorção e negação do saber científico e do bom senso, deflagrando uma inédita dinâmica de mitificação exacerbada da realidade e produção institucional da ignorância.
O bolsonarismo, como argumentam alguns analistas, instaurou no Brasil uma “guerra cultural” sem precedentes, plantada no seio do que Vladimir Safatle alega ser a “mais nova invenção” brasileira: “um regime militar sem golpe”, que configuraria, portanto, a “segunda fase do regime militar”.
Pelo exposto, fica evidente a gravidade dessa nefasta violência simbólica operada pelo regime autoritário de plantão. O bolsonarismo incorre numa frontal violação dos direitos humanos, posto que mina e destrói gradativamente os fundamentos da convivência humana, os valores existenciais, a esperança e a própria vida das pessoas. É justamente esse o cerne do genocídio catastrófico em curso na pandemia – com mais de 300 mil vidas sacrificadas até hoje e que segue em ascensão descontrolada -, do doloso aumento das desigualdades sociais e da miséria, do trágico crescimento do extermínio de jovens e mulheres vulneráveis e do desolador abandono da educação nacional, entre outras mazelas.
Todavia, esse complexo arranjo institucional de poder autoritário é instável, precisamente pela heterogeneidade das forças políticas que o sustentam. Ora, o Governo pode contar com o suporte político das instituições do Estado e de seus padrinhos de mercado em suas ações. Ora, pode ser pressionado e/ou censurado por eles, dependendo da qualidade da repercussão política dos atos governamentais. Eis uma das fragilidades internas desse regime que tende a potencializar-se e a fertilizar desgastes e recuos em situações singulares que aguce a insatisfação e a contrariedade dos amigos (sic) do “mito”.
Pois bem, imersos em tão conturbada configuração, é imperativo, como o fizera o povo chileno, retomar as rédeas da mudança histórica, restaurando nossa dignidade e qualidade de vida. Precisamos urgentemente construir ações coletivas de contestação e confronto com o poder instituído em nossas redes de interação social.
Dado o teor cultural que guia a estratégia autoritária basilar do atual regime, o campo educacional emerge como espaço/tempo mais propício e profícuo para protagonizar uma ampla frente de mobilização democrático-progressista, capaz de exigir e promover grandes transformações.
Considerando a magnitude, o domínio de saberes e a capacidade de intervenção e inserção social dos coletivos de educadores e educadoras por todo o Brasil, termos à disposição um poderoso arsenal cultural e humano para confrontar, mesmo via “ensino remoto”, a violência simbólica institucional e, como propunha Norbert Elias para os sociólogos, nos tornarmos “destruidores de mitos”. Como educadores/as, além de termos acesso privilegiado aos conteúdos culturais, historicamente acumulados, dominamos bons métodos e técnicas de formação humana e mantemos relações estreitas com os milhões de estudantes e suas famílias que integram as comunidades escolares. São essas nossas verdadeiras e eficazes armas para combater a opressão, os mitos e a ignorância que desintegra nossa existência.
Pelo direito de viver em paz! Neste momento, não basta só “resistir”. Faço minha a máxima de Mariátegui: “Combato, logo existo”.
1Doutor em Ciência Humanas (FAFICH/UFMG). Pedagogo da Rede Municipal de Educação e Professor Adjunto da Faculdade Pitágoras – Betim/MG
Imagem de destaque: Sfs90 / Wikimédia Commons – Muro com pintura do Negro Matapacos, símbolo dos protestos no Chile.