Educação e défice democrático

Alexandre Fernandez Vaz

Em 1960 as eleições presidenciais foram vencidas por Jânio Quadros. Quatro anos depois, os militares, com forte apoio de setores da sociedade civil, deram um golpe, sacando João Goulart da cadeira presidencial, ele que assumira o governo depois da renúncia do titular. Colocaram-se a si mesmos no governo do país, dando início a um período ditatorial que duraria mais de duas décadas. A abertura política começou nos anos Geisel (1975-1978), e deveria ser, como rezava a cartilha do General Golbery dos Santos Silva, “lenta, gradual e segura”. Apenas em 1989 tivemos novas eleições diretas para o cargo máximo do país.

A democracia, que mais que regra foi exceção ao longo de nossa história, não se completou como processo, mantendo-se até hoje como incerteza e instituição que não goza do prestígio necessário para sua consolidação. Basta lembrar o quanto os militares têm presença na política nacional, o que é mostra de nossas insuficiências, afinal, não se pode ser um sujeito político – para o qual a fala e a escuta são dispositivos fundamentais – com uma arma na mão.

Faz parte desse défice democrático a redução da política à esfera do entretenimento, como mostraram, há mais de setenta anos, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Em Dialética do esclarecimento, o encontro entre indústria cultural e totalitarismo é analisado como um dos pilares da experiência histórica de então, processo que de lá para cá só se avolumou. Os exemplos são muitos, mas basta aqui lembrar de Donald Trump nos Estados Unidos e de Silvio Berlusconi, na Itália, ambos empresários da mídia que alcançaram os cargos máximos de seus países. O primeiro também constituiu carreira frente às câmeras, e ambos foram contumazes personagens do comércio de mexericos. A indústria cultural tem em si mesma um de seus principais assuntos. Em uma e em outra situação apareceram como redentores contra o que seria a desonestidade dos políticos e o fracasso da política tradicional. 

Na corrida eleitoral de 1989 também tivemos um exemplo da tentativa de transferência de capital midiático para a política. Nada menos que Sílvio Santos, dono do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e apresentador do programa de auditório mais longevo no país. Sua candidatura não chegou a termo por algum problema nos prazos para a inscrição de chapas, mas não deixou de causar rebuliço e ouriçar público e oponentes. Estes, aliás, formavam uma cartela que ia do então marxista-leninista Roberto Freire (hoje um líder de direita) ao ruralista Ronaldo Caiado, passando por Lula, Brizola, Maluf, Covas, Enéas e Collor, o aventureiro que acabou vencedor da contenda.

Eis que a corrida eleitoral de 2022, já em marcha, por pouco não nos ofereceu um concorrente saído diretamente da televisão. Luciano Huck, experiente animador de tardes de sábado, há alguns anos ameaça entrar na disputa, mas desistiu de postular-se porque, segundo se lê na grande imprensa, as possibilidades de chegar ao segundo turno teriam diminuído muito depois que o ex-presidente Lula voltou ao páreo. O espaço para uma “terceira via” teria se esvaziado, consolidando-se a polarização entre o atual mandatário, Jair Bolsonaro, e o próprio líder do Partido dos Trabalhadores.

Por dois motivos, a situação mostra nosso défice formativo, a pouca atenção que temos destinado à educação para a democracia. O primeiro diz respeito ao engodo segundo o qual a “terceira via” seria equidistante em relação às posições representadas por Lula e Bolsonaro, estando ela centro no espectro político. Uma posição antidemocrática não pode ser confundida com oposições democráticas, mesmo, e principalmente, que não estejamos de acordo com elas. O segundo se refere ao caráter de espetáculo ao qual a política se reduz ao aceitarmos como algo positivo que um animador de auditório possa ser candidato à presidência. Não faltou quem dissesse, entre empresários e jornalistas, além de políticos como Fernando Henrique Cardoso, que Luciano Huck seria uma ótima opção eleitoral.

A democracia, disse certa vez Adorno, não é uma mercadoria na prateleira das opções políticas, como se fosse um produto que pudesse ser testado, consumido, devolvido, trocado. Não, a democracia é um valor inegociável nas sociedades contemporâneas. Parte-se daí para considerar a organização da vida em comum. Ademais, faz parte da cultura democrática que o entretenimento não se misture com o que acontece no cotidiano, de maneira que um ator de telenovela não seja confundido com o personagem que representa, assim como tampouco o domínio do picadeiro eletrônico e a exploração da miséria como show não são o mesmo que a gestão do Estado.

Em um país em que a tradição autoritária é tão forte e em que os meios de comunicação de massa exercem tamanha influência, a educação pode fazer alguma diferença. Democratizar a educação, educar para a democracia. Que difícil é viver no Brasil.

Ilha de Santa Catarina, junho de 2021.

Para saber mais: 

GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. 560 p.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 256 p. 


Imagem de destaque: Michael Vadon

 

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