A pátria do caos das armas 

Carlos André Martins Lopes 

O número de pessoas com certificado de registro de armas de fogo no Brasil cresceu 474% entre 2019 e 2022. Esse aumento não causa surpresa, visto que as eleições presidenciais de 2018 foram vencidas pelo grupo que tinha como uma de suas principais plataformas de campanha a facilitação do acesso às armas, de forma legal, por parte da população. Aliás, um dos símbolos da campanha desse grupo era um gesto, feito com os dedos polegar e indicador, que simulava uma arma, símbolo esse, inclusive, muito popular no submundo violento das milícias e do tráfico. A lógica de permitir o acesso legal às armas de fogo estava expressa em afirmações como “o bandido está armado enquanto o cidadão de bem não está” e “é preciso armar o cidadão de bem para que ele possa se defender”.

Primeiro, essa lógica não questiona o porquê de os ‘bandidos’ estarem armados; segundo, o Estado, instrumentalizado pelo citado grupo, confessa não pretender desarmar as organizações criminosas; terceiro, para esse grupo, as armas servem como instrumento de defesa e, por fim, o próprio cidadão deve se responsabilizar pela sua segurança.

As armas proliferam no Brasil, portanto. Isso acontece ao mesmo tempo em que os investimentos em educação caem – em 2022, pelo quinto ano consecutivo. A fome também se agiganta. São 33,1 milhões de brasileiros passando fome em 2022 – 14 milhões a mais do que em 2021, o que demonstra que, conforme diz o verso de Sereníssima, canção da banda Legião Urbana, “O caos segue em frente com toda calma do mundo” à medida em que os anos vão passando. Tudo isso, ainda parafraseando a citada música, em meio ao ‘sorriso’ (de indiferença) que não tem nada de bobo daquele que tem a batuta nas mãos, entremeado com soluços que mimetizam a situação de pacientes graves de covi-19 com dificuldades para respirar.

Com o desemprego não é diferente. São 11,1% de desempregados no país. E a vida não está fácil nem mesmo para quem está empregado(a), já que existe uma combinação criminosa entre desemprego, inflação e baixa renda. Sendo assim, a fome não é consequência apenas da taxa alta de desemprego. Milhões podem estar empregados e mesmo assim estarem vivendo em situação de insegurança alimentar ou passando fome.

Com tudo o que foi falado acima, fica evidente que as armas de fogo que estão sendo registradas no país se concentram apenas numa minoria rica ou que se percebe como tal. Se é verdade que as armas servem para que os cidadãos possam se defender, esse direito de defesa está sendo criado apenas para uma pequena parcela da sociedade, que pode comprar esse arsenal bélico.

Mas vale salientar que a história mostra que mais armas não significa mais segurança. Conhecemos a história do Brasil das primeiras décadas do século XX. Citamos, como exemplo, o tempo do cangaço no Nordeste, período no qual existiam mais armas em circulação do que emprego, terra, educação e comida para o povo. Época em que os homens (de elite ou vinculados ao crime) se armavam até os dentes ao mesmo tempo em que ninguém estava seguro. As fazendas tinham depósitos de armas e jagunços para defendê-las. Mesmo assim eram invadidas, e lá se praticavam crimes bárbaros como estupros, mutilações e assassinatos cruéis. É plausível pensar que muitos dos ataques a fazendas tinham como objeto de cobiça dos criminosos precisamente as armas. Nesse período estava em vigor, inclusive, aquela ideia de que ‘bandido bom é bandido morto’. Matavam-se cangaceiros, arrancavam-lhe a cabeça, mas quanto mais se matava mais criminosos surgiam, pois o Estado não atuava para eliminar as causas do fenômeno do crime – concentração de terras e injustiças a ela relacionadas – mas tão somente para eliminar pessoas.

As armas não servem, portanto, como ferramenta de defesa; e, mesmo que sirvam, elas não estão disponíveis para a população pobre, conforme demonstrado acima. Esse arsenal bélico tem, na verdade, destino definido: pessoas ricas. Indivíduos, especialmente alguns grupos empresariais, que se tem a si mesmos como as “forças produtivas da sociedade”. Sujeitos que encarnam ideologias que afirmam que pobre é naturalmente preguiçoso e, por isso, propenso à delinquência, vindo daí a necessidade de se possuir armas.

Parece que havia, entre as elites brasileiras, em 2016, a previsão de que as reformas liberais (trabalhista, previdenciária, entre outras) trariam consequências trágicas para a população, que elas, as reformas, iriam generalizar o desemprego, a fome e a miséria. Previa-se, dentro da visão elitista de criminalização da pobreza, que a criminalidade iria aumentar, daí a proposta de distribuir armas (para ricos) ao mesmo tempo em que as citadas reformas avançavam.

Por fim, a política de permitir acesso fácil a armas visa fazer com que o Estado transfira a responsabilidade que é dele para o cidadão. Há pouco mais de uma década assistimos a um policial discursar em praça pública, em contexto de greve da PM local. No discurso, ele dizia que ‘se o governador não quisesse pagar um salário digno à categoria, que entregasse o dinheiro dos impostos ao povo, pois assim eles, os policiais, seriam pagos diretamente pelos próprios cidadãos. O que esse personagem grevista propõe, em outros termos, é a privatização da segurança, isto é, a eliminação do Estado na relação segurança pública-sociedade. A evidente consequência dessa proposta seria a formação de grupos paramilitares, milícias. Assim, os endinheirados teriam as armas (e a licença para matar); pessoas sem condições de se armar teriam sobre elas o poder das milícias, estas, livres das coerções estatais, podendo atuar como a lei, podendo exercer o papel de juízes.


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