Do primado da correção ao da inclusão

Aleluia Heringer Lisboa

 

É no ambiente escolar que o sujeito da aprendizagem, com deficiência ou não, deveria encontrar seu lugar e conforto cognitivo. Acolhê-lo significa ir até sua sala de aula, onde a história se desenrola na companhia de tantos outros colegas, que também trazem consigo suas dores e alegrias.

Essa demarcação de território – escola – indica que existem outros pontos de partida e possibilidades de abordagem, como a legislação ou o discurso médico/psicológico, os quais entendemos que precisam dialogar para que sínteses e encaminhamentos mais lúcidos sejam feitos a favor do desenvolvimento pleno do aluno e da saúde emocional de todos os envolvidos.

A relação entre pessoas com deficiência, suas respectivas famílias e a instituição escolar tem sido, na maioria das vezes, conflitante. Famílias não se sentem compreendidas, culpam-se quando “erram na mão” no momento de fazer o filho alcançar “o ritmo” da turma. O estudante com profundo sentimento de fracasso desacredita e desiste de si mesmo. Os docentes se sentem sobrecarregados com tantas exigências. Apesar da boa vontade de todos envolvidos, esse contexto gerou, e ainda gera, muitas histórias de fracasso. É preciso avançar e sair desse círculo vicioso. Concordamos que essa percepção tardia da necessidade de inclusão tem relação com a própria história da educação.

Na Europa, desde o final do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, havia uma forte percepção entre os médicos higienistas, políticos e educadores de que construir uma sociedade e assegurar sua continuidade implicava intervir sobre o corpo. Jorge Crespo, em seu livro “A História do Corpo”, constata que em várias nações foram desenvolvidas políticas de higiene pública sistemática que contavam, como importantes aliados, as escolas primárias e secundárias no processo de aprendizagem e divulgação das regras de higiene corporal.

A tardia escola para o povo, incipiente no Brasil ainda no início do século XX, foi desenhada, seguindo o modelo já consolidado na Europa, de forma ajustada à racionalização dos tempos e espaços, o que favorecia e pedia a padronização de todos seus elementos. Esse aparato escolar apostava também em uma homogeneização dos corpos e teve na prática da Educação Física (Gymnastica), uma grande aliada. Seu ensino, conforme estudos de Tarcísio Mauro Vago, era orientado para o primado da correção, traduzido pela crença da capacidade da ginástica em endireitar e robustecer os corpos das crianças.

Dentro desse contexto histórico, podemos considerar que é relativamente nova a ideia de uma escola que assegure e promova, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para todas as crianças e jovens, visando a sua inclusão social e cidadania.

Essas disposições que abrem o estatuto do deficiente,interpelam a escola e suas práticas, pois não é possível ensinar tudo a todos do mesmo jeito, muito menos considerar que, automaticamente, se alguém ensina, logo, o outro aprende. Esse modo de operar lança sobre o sujeito da aprendizagem a culpa pela não aprendizagem. Convive-se com um ranço do passado que impõe a todos uma mesma régua e medida e excluem do processo aqueles que apresentam “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (Art. 2º – Lei 13146).

Por tudo isso, consideramos que três ações básicas e sinceras podem ajudar. Primeiramente, precisamos acolher sem temer. As histórias das famílias com filhos com deficiência se parecem. De escola a escola, de conversa em conversa, com ou sem justificativas, acumulam muitos nãos e portas fechadas. Alterar esse jogo de empurra-empurra e chamar para si o cumprimento da função social da escola é o primeiro passo. Família não é ameaça, ela busca ajuda. O tempo que se perde buscando brechas na lei para não cumpri-las poderia ser investido em entender o caso de quem nos procura.

O segundo é assumir a fragilidade e pedir ajuda. Os profissionais que estão dentro da escola não receberam formação para entender os códigos e procedimentos que envolvem as inúmeras deficiências. Trazer para dentro da escola pessoas com deficiências, sem que condições de trabalho sejam oferecidas, criará uma grande indisposição. Contudo, é preciso fazer o movimento de sair desse lugar do “não temos condições”. Ter no quadro funcional alguém que tenha estudo específico para ler e decifrar relatórios, laudos, elaborar planos de desenvolvimento individual, orientar os professores, propor adaptação de materiais pedagógicos, é um investimento que trará segurança para todos os envolvidos.

O terceiro passo é saber quem são esses estudantes. Muitas escolas têm fichas de acompanhamento individual. Conversando com um supervisor é possível mapeá-los e saber quais irão necessitar de um PDI – Plano de Desenvolvimento Individual que engloba uma adaptação curricular. Essas adaptações não significam alterar o currículo ou a matriz de ensino. Pode ser desde uma mudança no ambiente, como trocar de lugar, construir uma rampa, uma mesa mais alta, a cor do fundo do quadro, a facilitação curricular, simplificação do currículo até o aumento de temporalidade na série que implica retenção do estudante na série/ano. Como se pode ver, uma adaptação pode ser de grande ou pequeno porte e construída, a partir da avaliação diagnóstica multidisciplinar, pelo profissional com conhecimento técnico e de confiança da escola, além do professor.

O mais importante é entender o funcionamento desse estudante: o que ele traz de potencialidade e deficiência e qual o impacto ambiental/escolar ele irá enfrentar e que precisa ser amenizado. Deficiência não está na pessoa. A dificuldade maior está no ambiente.

Aqueles que falam em nome da educação para a cidadania plena não deveriam ignorar que a vida em sociedade pressupõe pessoas com deficiência. Elas estão e sempre estiveram no mundo, em nossas casas e na escola. Agir somente por exigência legal, e não por convicção de que esse é o papel de quem lida com a educação, é, no mínimo, contraditório.

O estatuto do deficiente deu-lhes visibilidade. Onde estavam? Volto meus olhos para as mesmas cadeiras e identifico que eles sempre estiveram lá. A diferença é que hoje temos mais elementos para entendê-los e nomear suas dificuldades. Precisamos nos perguntar: por qual motivo esse jovem não consegue aprender? Afastando dessa realidade e lançando a vida em uma perspectiva de longa duração, veremos essas pessoas com deficiência e todos aqueles que passaram por suas vidas, inclusive as escolas. Se essas vidas se transformassem em um filme, qual seria o seu papel? Cada escola, cada diretor, cada professor… decida.

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