Alma esvaziada de si mesma não pega nome. Vaga desatinada entre miasmas da inconsciência. O vazio tem sentido quando confere a escolha. Vazio provocado é atributo da opressão. O frio e o vazio não sopram alento: provocam tempestades no vórtice da existência. Dores sem escala. Choros sem vela. Infértil razão.
_ Vi a fome vestida de branco.
_ Ela não gosta de branco. Prefere vermelho.
_ Cabelos compridos. Lisos. Grisalhos.
_ De jeito nenhum. Os cabelos dela são crespos. Pretos. Bem pretos.
_ Mancava. Arrastava uma nuvem de poeira.
_ Nunca! De saltos e seca. Ela detesta bagagem.
_ Úmida. Pegajosa. Esfarrapada.
_ Bem vestida. Sempre bem vestida.
_ Vocês dois discutem o óbvio. Ainda não aprenderam. A fome não se veste. Desveste.
_ É uma questão de ponto de vista.
_ O ponto de vista é uma questão.
_ Sequei as lágrimas do poeta.
_ Poeta não chora.
_ Chora.
_ Poeta faz poeta. Ponto final.
_ Poeta faz poesia. Ponto inicial.
_ Prefiro conversar com o ponto de vista.
_ A vista é um ponto.
_ O absurdo também.
_ Não. Absurdo e ponto de vista não se bicam.
_ Bicam.
_ O absurdo é leve e livre. O ponto de vista é tirano.
_ Injusto. As esquinas estão cheias de pontos de vista. São populares.
_ Não. São elite. Não dobram esquina.
_ Prefiro o absurdo, sob qualquer ponto de vista.
_ Ah! Eis a explicação para o seu gosto.
_ Não tenho gosto. Tenho literatura.
_ O que você chama de literatura eu chamo de registro do além.
_ De jeito algum. A literatura é daqui mesmo. Sai do brejo. Rola na sarjeta.
_ Isso é escorpião.
_ O zodíaco passa por ela no segundo decanato.
_ Refiro-me às pragas peçonhentas.
_ Também estão na literatura.
_ Pelo visto, a sua literatura é um tanto quanto anarquista. Vale tudo!
_ Tudo vale. Se vem da vida, vai para a vida.
_ O contrário. Se vem da vida tem dono.
_ A vida não tem dono. Acontece.
_ Não acontece. Deixa de ser.
_ Se deixa de ser, não é.
_ Outro ponto: por que fazer literatura?
_ Por que comer?
_ Eu gosto da fome vestida de vermelho. Aprecio os passos dela.
_ Isso é demagogia. A fome vestida de branco é uma senhora para se temer.
_ Na estética da criação, a maçã era a fome.
_ Não, a maçã era o desejo. Volúpia.
_ Sem o desejo, não há criação.
_ Depende do ponto de vista.
_ Não! Depende da literatura.
_ Prefiro o que pode ser tocado.
_ A literatura tem corporeidade.
_ Nunca vi alguém vestindo-se dela.
_ Vi. Vi e vivi.
_ Metamorfose.
_ Então, é disso que a literatura trata.
_ Você fala absurdos.
_ Converso com eles no café da manhã. Ao meio dia os dispenso para a siesta. À noite, eles retornam cheios de vigor para outra rodada.
_ Diálogos são roubadas.
_ Achados. Verdadeiros achados.
_ Achados são roubados. A depender do contexto.
_ Diga-me, José. Você encontrou a pedra?
_ Sim. Dela fiz um sapato.
_ Sapatos de pedra são traiçoeiros. Prendem você ao chão e roubam-lhe as janelas.
_ Janelas são cadeiras da alma.
_ São chaves da alma, meu amigo. Chaves.
_ Eu prefiro cadeados. Passam-me a sensação de trancas externas mais densas.
_ Então. É disso que falo. Eu faço literatura para encontrar janelas abertas.
_ Melhor fechá-las.
_ Abri-las.
_ Bom… se deixar as janelas de sua alma abertas você vira poeta.
_ Todo poeta é homem político. Diz-se perigosa profissão nos dias de hoje.
_ Os dias de hoje são perigosos.
_ Os dias servem à fome. São lacaios do tempo. Postam mesa para a submissão.
_ Está enganado, amigo. O tempo serve à mesa da fome. E isso parece não sofrer mudança.
_ A mudança é muito, muito mais perigosa do que o dia.
_ Mudança é discurso de povo.
_ Do povo.
_ Não. Não. Do povo vem a ficção.
_ Realidade.
_ Ilusão.
_ A ilusão é o coveiro do teatro.
_ O teatro é vida.
E as almas despovoadas passaram ao largo do diálogo!
_ Absurdo!
Imagem de destaque: rishi / Unsplash
http://www.otc-certified-store.com/cancer-medicine-europe.html zp-pdl.com www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/online-payday-loans-cash-advances.php