Diálogos com o absurdo – a literatura não tem dono

Ivane Perotti

Alma esvaziada de si mesma não pega nome. Vaga desatinada entre miasmas da inconsciência. O vazio tem sentido quando confere a escolha. Vazio provocado é atributo da opressão. O frio e o vazio não sopram alento: provocam tempestades no vórtice da existência. Dores sem escala. Choros sem vela. Infértil razão.

_ Vi a fome vestida de branco.

_ Ela não gosta de branco. Prefere vermelho.

_ Cabelos compridos. Lisos. Grisalhos.

_ De jeito nenhum. Os cabelos dela são crespos. Pretos. Bem pretos.

_ Mancava. Arrastava uma nuvem de poeira.

_ Nunca! De saltos e seca. Ela detesta bagagem.

_ Úmida. Pegajosa. Esfarrapada.

_ Bem vestida. Sempre bem vestida.

_ Vocês dois discutem o óbvio. Ainda não aprenderam. A fome não se veste. Desveste.

_ É uma questão de ponto de vista.

_ O ponto de vista é uma questão.

_ Sequei as lágrimas do poeta.

_ Poeta não chora.

_ Chora.

_ Poeta faz poeta. Ponto final.

_ Poeta faz poesia. Ponto inicial.

_ Prefiro conversar com o ponto de vista.

_ A vista é um ponto.

_ O absurdo também.

_ Não. Absurdo e ponto de vista não se bicam.

_ Bicam.

_ O absurdo é leve e livre. O ponto de vista é tirano.

_ Injusto. As esquinas estão cheias de pontos de vista. São populares.

_ Não. São elite. Não dobram esquina.

_ Prefiro o absurdo, sob qualquer ponto de vista.

_ Ah! Eis a explicação para o seu gosto.

_ Não tenho gosto. Tenho literatura.

_ O que você chama de literatura eu chamo de registro do além.

_ De jeito algum. A literatura é daqui mesmo. Sai do brejo. Rola na sarjeta.

_ Isso é escorpião.

_ O zodíaco passa por ela no segundo decanato.

_ Refiro-me às pragas peçonhentas.

_ Também estão na literatura.

_ Pelo visto, a sua literatura é um tanto quanto anarquista. Vale tudo!

_ Tudo vale. Se vem da vida, vai para a vida.

_ O contrário. Se vem da vida tem dono.

_ A vida não tem dono. Acontece.

_ Não acontece. Deixa de ser.

_ Se deixa de ser, não é.

_ Outro ponto: por que fazer literatura?

_ Por que comer?

_ Eu gosto da fome vestida de vermelho. Aprecio os passos dela.

_ Isso é demagogia. A fome vestida de branco é uma senhora para se temer.

_ Na estética da criação, a maçã era a fome.

_ Não, a maçã era o desejo. Volúpia.

_ Sem o desejo, não há criação.

_ Depende do ponto de vista.

_ Não! Depende da literatura.

_ Prefiro o que pode ser tocado.

_ A literatura tem corporeidade.

_ Nunca vi alguém vestindo-se dela.

_ Vi. Vi e vivi.

_ Metamorfose.

_ Então, é disso que a literatura trata.

_ Você fala absurdos.

_ Converso com eles no café da manhã. Ao meio dia os dispenso para a siesta. À noite, eles retornam cheios de vigor para outra rodada.

_ Diálogos são roubadas.

_ Achados. Verdadeiros achados.

_ Achados são roubados. A depender do contexto.

_ Diga-me, José. Você encontrou a pedra?

_ Sim. Dela fiz um sapato.

_ Sapatos de pedra são traiçoeiros. Prendem você ao chão e roubam-lhe as janelas.

_ Janelas são cadeiras da alma.

_ São chaves da alma, meu amigo. Chaves.

_ Eu prefiro cadeados. Passam-me a sensação de trancas externas mais densas.

_ Então. É disso que falo. Eu faço literatura para encontrar janelas abertas.

_ Melhor fechá-las.

_ Abri-las.

_ Bom… se deixar as janelas de sua alma abertas você vira poeta.

_ Todo poeta é homem político. Diz-se perigosa profissão nos dias de hoje.

_ Os dias de hoje são perigosos.

_ Os dias servem à fome. São lacaios do tempo. Postam mesa para a submissão.

_ Está enganado, amigo. O tempo serve à mesa da fome. E isso parece não sofrer mudança.

_ A mudança é muito, muito mais perigosa do que o dia.

_ Mudança é discurso de povo.

_ Do povo.

_ Não. Não. Do povo vem a ficção.

_ Realidade.

_ Ilusão.

_ A ilusão é o coveiro do teatro.

_ O teatro é vida.

E as almas despovoadas passaram ao largo do diálogo!

_ Absurdo!


Imagem de destaque: rishi / Unsplash

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