Debates despolitizantes: sobre a proibição de pensar na corrida eleitoral

Alexandre Fernandez Vaz

É chover no molhado dizer que estamos em momento decisivo da vida nacional. Primeiro, porque quem vive no Brasil está sempre numa esquina, sempre tendo que decidir, sem as condições necessárias para isso, para onde ir (isso quando não se é simplesmente levado); segundo, porque estamos na última semana da corrida eleitoral pela Presidência da República, a mais complexa e insegura institucionalmente que tivemos desde que as eleições diretas para presidente foram restabelecidas pela Carta Constitucional de 1988, e realizadas no ano seguinte.

A violência que temos observado não é exceção nas disputas “políticas”, mas, passados os anos da Nova República, de fato não estávamos mais acostumados à tamanha virulência traduzida em ameaças, mentiras e linchamentos virtuais. Em meio a isso, fica à disposição a propaganda eleitoral em rádio e TV, assim como os debates entre candidatos, em especial os que colocam em confronto postulantes à presidência e ao governo dos estados.

Desde que me conheço por gente, assisto propagandas eleitorais e acompanho, um pouco mais tarde, os debates. Na minha infância, assistia pela televisão as fotografias dos candidatos com alguém lendo, em off, as suas pretensas qualidades, às vezes com uma música de fundo. Só havia dois partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que apoiava a ditadura empresarial-militar, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a oposição oficial ao regime. Estávamos sob a Lei Falcão.

Findos os governos dos generais, a mudança na legislação fez com que se entronizasse o debate entre os postulantes como um dos mecanismos de comparação entre eles e entre suas propostas. A partir, suponho, das eleições para prefeito das capitais de estado e áreas de segurança nacional, em 1985 (para os outros municípios haviam sido em 1982), candidatos são sabatinados e discutem. Ou, pelo menos, era para ser assim.

Para a prefeitura da cidade de São Paulo, naquele 1985, concorriam, entre outros, Fernando Henrique Cardoso, Eduardo Matarazzo Suplicy e Jânio Quadros. Sim, ele mesmo, que, depois de governar a capital e o estado, fora Presidente da República, cargo ao qual renunciaria. “O jeito é Jânio”, dizia a propaganda do ganhador que, no entanto, não compareceu a nenhum dos debates. FHC ia bem e pensávamos que venceria, mas se embananou frente a uma pergunta de Boris Casoy (se acreditava na existência de Deus) e deixou-se fotografar, antes do pleito, na cadeira de prefeito municipal. Não pegou bem. Suplicy, por sua vez, repetia que as pesquisas estavam enganadas, que nelas não se podia confiar, discurso ao qual voltaria no ano seguinte, ao se candidatar ao governo estadual.

Com efeito, 1986 foi um ano marcado por disputas eleitorais em que a selvageria retórica alcançou importantes proporções. Se Suplicy, apesar das reclamações, mantinha a fineza e a pertinência das propostas, não se podia dizer o mesmo de alguns de seus adversários, como o vencedor Orestes Quércia (PMDB), o empresário Antônio Ermírio de Moraes e, principalmente, Paulo Maluf. Suponho que antes dele outros já o fizessem, mas nunca vi alguém tergiversar tão bem quanto Maluf, respondendo o que não era perguntado e lançando todo tipo de dúvida malévola sobre seus adversários.

Três anos depois, em 1989, chegamos ao que parecia ser o auge do espetáculo de auditório, com os candidatos a presidente ironizando-se mutuamente e desviando dos assuntos mais espinhosos: Lula (PT), Brizola (PDT), Roberto Freire (PCB – candidato que, aliás, vejam só, se declarava marxista-leninista) e Mário Covas (PSDB), compunham um lado, ficando o outro com o astro Maluf (PDC), Ronaldo Caiado (PSD) e Guilherme Afif Domingues (1989). Entre eles, Ulysses Guimarães (PMDB), que, mesmo tendo sido presidente da Assembleia Constituinte que concluira a Carta um ano antes, fez campanha anódina e alcançou votação pífia. Brizola propunha fechar a Rede Globo e se referia a Maluf como “filhote da ditadura”; este, por sua vez, dizia que o então governador do Rio de Janeiro era “desequilibrado”, qualificando a si mesmo como “competente”; Lula retrucava dizendo que a competência de Maluf era a de competir muito e jamais vencer. De qualquer forma, era empolgante, depois de anos de autoritarismo, ver a esquerda expor-se nos debates.

Como é amplamente conhecido, às vésperas do segundo turno de 1989, Lula e Fernando Collor de Mello (que não foi aos debates do primeiro) se enfrentaram, com desempenho melhor do segundo, o que foi potencializado pela TV Globo ao editar o material e divulgá-lo em seus programas. Parecia que aquele que poucos dias depois seria eleito presidente tinha arrasado o ex-líder metalúrgico, o que não era verdade.

De lá para cá os debates foram ficando cada vez mais controlados e previsíveis, aproximando-se de um princípio do esporte que é o da igualdade formal de chances. Não está errado que seja assim, obviamente, mas isso compõe a esportivização completa da campanha. Importante é vencer, e por isso a presença do coach/marqueteiro é tão importante.  Não se trata de apresentar ideias e debatê-las, mas de calcular o que deve ser dito para angariar apoio em regiões em que o candidato anda fraco. Para isso são mobilizados recursos das pesquisas científicas, como grupos focais e outros instrumentos de avaliação qualitativa, ao lado das grandes estatísticas que indicam tendências. Como um atleta prestes a entrar em campo, o candidato se vê orientado pela equipe de campanha. Somam-se a isso as torcidas que, como as do futebol, se mobilizam nas redes sociais.

“Boa impressão”, “confiança”, “autenticidade”: critérios que, no melhor dos casos, são precários, e no pior deles, enganadores, são valorizados pelos candidatos e por nós, eleitores. Difícil levar a sério, mesmo sabendo o tanto que nosso futuro depende disso. Oxalá esse espetáculo grotesco, que coroa os quatro anos de desvario, acabe logo.

Para saber mais
DIEGUEZ, Consuelo. O ovo da serpente. Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 328 p.

PLATÃO. A república: São Paulo: Perspectiva, 2010. 424 p. (Org. de Jacó Guinsburg).

SALLES, João Moreira. Entreatos. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2004, 117 minutos. (documentário).


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