De frente para as 32 telinhas nos pixels do meu computador

Kelly Morato

Eis ali, a minha turma de oitavo ano. São sete da manhã de uma segunda-feira e inicia-se ali a semana de provas. Conturbada e cheia de ansiedade, a semana de provas já era um evento triste de ver no ensino presencial: os alunos com verdadeiros ataques de nervos, os professores cabisbaixos com os calhamaços para corrigir. Muito trabalho antes, durante e depois. Se antes era triste, hoje em dia, remotamente, a semana de provas é devastadora. Os alunos aparentam o dobro da ansiedade. Nós, professores, temos o triplo do trabalho.

Eis que uma telinha em específica me chama atenção. Uma aluna chora e enxuga as lágrimas sistematicamente. Conheço-a e sei como as provas mexem com ela. Penso ser isso. Antes fosse. Correram os quarenta minutos de aula até eu ter a oportunidade de abordá-la. Atrasada para a próxima aula e atrasando-a também, peço que permaneça na sala virtual.

– O que houve? Por que está chorando? – pergunto.

– Meu… primo… professora… – ela balbucia, alternando a fala com o choro – Acabou de falecer de COVID.

Um arrepio tomou parte de mim. Antes fosse ansiedade pré-provas. Antes fosse qualquer outra coisa. Como consolar uma adolescente de 13 anos, no meio de uma pandemia?

– E, professora… Eu tenho prova hoje… Você viu? Eu até tentei participar da aula… Mas eu tô muito triste!

– Ei, calma. Eu sinto muito. Você não tem que se preocupar com a prova agora.

Pronto. O arrepio me tomou por completo. A aluna acaba de perder um parente, vítima de uma doença que já matou mais de 120 mil brasileiros, e ela está preocupada com a prova que deve fazer. E eu só pude abordá-la quarenta minutos depois. Sem ter muito o que fazer ou falar diferente de “não se preocupe com a prova. Eu sinto muito pela sua perda. Tire o dia para ficar com sua família. Vou olhar com o coordenador, espere um pouquinho e se acalme. Estou aqui”. Fiz contato com o coordenador. Informei a situação. Me despedi, as pressas, afinal outras trinta e tantas telinhas me esperavam em outra sala virtual. Com um gosto amargo na boca, inerte na cadeira de frente para o computador, lá fui eu desejar boa semana para outra turma. Com a cabeça e coração na aluna e no modelo e limites que a “escola” virtual impõe – escola entre aspas mesmo. O ambiente virtual chega mesmo a ser escola com tantos limitadores? Com tanto distanciamento? A aluna, que sabe-se lá já teve ou não alguma experiência com o luto antes, estava mais preocupada em engolir o choro e dizer o que foi a Guerra dos Sete Anos quando estava, ela própria, enfrentando a própria batalha. Dada a segunda e última aula dessa manhã foi que desmoronei. Não é a morte em si que me abalou e sim vê-la, no auge dos seus 13 anos, se cobrar e preocupar com uma prova – uma métrica, por vezes, tão vazia, tão limitante e limitadora – no momento em que perdia um ente querido. Quanta auto cobrança! Quanta crueldade ver adolescentes assim. E então, de quem é a culpa? Senti, mais uma vez, o gosto amargo. Me senti culpada por fazer parte de uma estrutura escolar que reprime sentimentos. Que reforça a meritocracia. Que enumera alunos. Que faz uma adolescente engolir o choro porque precisa fazer uma prova.

O sentimento de culpa veio dúbio: me sentia algoz mas também vítima. Tive eu também que engolir os meus próprios sentimentos e tristezas e encarar a outra turma, sem nem mesmo levantar da cadeira. Assim como ando tendo, desde o início da pandemia, como tantos outros colegas professores que engolir o cansaço pelo trabalho triplicado, encarar a ansiedade e tentar, por muitas vezes, de maneira frustrada, encurtar a distância, forjar a escola numa outra “escola”. Estamos adoecendo. Alunos e professores. E bastaria um olhar mais apurado ou um cuidado diferente para todos nós testarmos positivo para “saudade da sala de aula”.

Agora, às dez da manhã de uma segunda-feira de semana de provas, eu só queria abraçar a minha aluna e também ser abraçada.


Imagem de destaque: Maxim Tolchinskiy / Unsplash http://www.otc-certified-store.com/beauty-products-medicine-usa.html https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php https://zp-pdl.com/apply-for-payday-loan-online.php https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php

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