– a fome nunca foi embora: criou garras maiores e mais poderosas –
Agosto ganhava fôlego. O que parecia ser um fenômeno natural, descrevia o mês com cheiros de maus agouros. Empilhados pelas calçadas, involuntários moradores de rua desenhavam uma paisagem urbana deplorável, sinistra e dolorosa. Bolsões de pobreza extrema abriam novas trilhas diante dos passantes. As sementes da indiferença plantavam-se em solo fecundo: não mais do que um incômodo estético. Não mais do que o odor das fezes compiladas em verbos de ação: a ordem estabelecia-se no extermínio das metáforas de vida. Nenhuma figura de linguagem sobrevivia ao poder dos investimentos na morte. O mapa da fome estendia o seu território nauseabundo.
Era agosto. Deploráveis bocarras serpenteavam as línguas do poder insano. Mesmo que todos soubessem mais do mesmo, e acumulassem justificativas nas faces da repressão, dividia-se o povo: criança na rua é vagabunda. Talvez, levada por tal motivação, a “tia” da escola de muros verdes estranhou a ausência da pequena pedinte. Não sentira a falta da menina. Não era isso. Ela apenas estranhara a ausência daquele incômodo que se chegava com dois olhos de criança velha: uma velha criança. A “tia” não queria ser exigida pela consciência reclamante. Inconscientemente, temia o que via e não dava conta de explicar o que sentia. Melhor oferecer “graças a deus” por não mais precisar pensar “naquilo”: o seu coração sofria.
Agosto corria a escola. Professores e crianças do Fundamental I alternavam-se no consolo individual. Em casa, separadamente, as famílias suspiravam: poderia ser pior! Crianças, famílias e escola pareciam aceitar passivamente o que vinha: presságios agourentos do mês do desgosto.
Era agosto também para a senhora de boa família que, incomodada com as crianças esfarrapadas à solta no bairro, ligara para a prefeitura e registrara uma reclamação. Entre todos, parecia satisfeita a tal senhora, pois compreendia ter sido rapidamente atendida. Sem crianças vadias depreciando as calçadas. Boas famílias moravam ali.
Quando algumas sobras de merenda deitavam à sua frente, a funcionária da escola lembrava-se rapidamente da menina suja e esfomeada. Sempre esfomeada, aquela criança. Aceitava qualquer resto, qualquer pedaço de coisa qualquer e ainda agradecia. A “tia” não se dera ao dever de pensar mais sobre o assunto. Ou era coisa de deus, ou do governo. Ambos estavam distantes.
Mas agosto cobrava a história. No final de uma semana muito agitada na escola, um professor que morava em outro bairro indagou:
_ Não viram mais a menininha da calçada?
Alguns responderam negativamente e outros sequer sabiam do que se tratava.
Movido pela curiosidade, o professor perguntou pelo caminho: ninguém sabia dizer. Acabou por esquecê-la, já que o mês arremetia-se contra as expectativas de quem quer que fosse.
Na metade do primeiro mês do segundo semestre, a campainha da escola soou um toque curto.
_ Tia… tem biscoito?
Um menino esquálido e uma menininha esfarrapada espiavam por entre as sujeiras e as feridas do rosto.
_ Vocês voltaram? Onde está a outra menina?
_ …
_ Ela se escondeu? Onde está?
_…
_ Ah! Já sei…deve estar com vergonha. Hoje não sobrou nada.
_…
_ Cadê a outra menina?
Os olhos das duas crianças mergulharam em breve vazio. Breve era a dor e breve era a vontade de explicar. Nada disseram. Permaneceram no silêncio desprovido de sonhos. Sonhos são amuletos de sorte e aquelas crianças desconheciam ambos. O abandono e a indiferença matam, mas para elas, a morte surgia com a mesma naturalidade da fome na barriga murcha.
A funcionária da escola desejou não ter perguntado. Também não desejou sentir o súbito lampejo que lhe chegou em forma de certeza: o mês de agosto era cruel.
Imagem de destaque: Photo by Kat J / Unsplash
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