Natascha Stefania Carvalho de Ostos*
O ano de 2020 foi marcado pela pandemia de Covid-19. Cientistas de todo o mundo se empenharam na busca de soluções que pudessem salvar vidas e restabelecer a normalidade social. Mas de qual normalidade estamos falando? Muito se discute sobre os impactos e efeitos da doença, mas, proporcionalmente, se debate pouco sobre como chegamos a essa situação. O risco é de que em alguns anos, após superarmos tal conjuntura (com um custo enorme de vidas), sigamos em frente como se a doença tivesse sido uma fatalidade, e não uma consequência, dentre outros fatores, de um modelo de exploração econômico predatório, calcado na destruição da natureza, numa escala sem precedentes na história da humanidade.
Nos dias de hoje, a expansão urbana e do agronegócio invadem os habitats dos animais, provocando sua migração para as cidades e desequilibrando a cadeia de predação. Além disso, temos uma indústria gigantesca de criação de bichos, os quais vivem confinados em espaços pequenos e lotados, potencializando situações de transmissão de doenças entre humanos e não-humanos, com consequências graves para todos os seres vivos.
No fim do ano de 2020, a imprensa noticiou que governos europeus determinaram o sacrifício de milhões de visons criados em cativeiro, pois descobriram que esses animais, cujas peles são usadas na indústria da moda, contraíram Covid-19 de humanos, retransmitindo a doença para as pessoas. São milhões de bichos confinados, com o único objetivo de extração da sua pele para a produção de artigos de luxo, acessíveis a poucas pessoas. E o mais grave: nos visons o vírus sofreu mutação, colocando em risco a produção de vacinas no mundo. Esse caso é emblemático, pois explicita a forma como as sociedades ocidentais pensam e lidam com a natureza, a partir de uma matriz cultural que tem história.
As relações construídas, ao longo do tempo, entre os seres humanos e o mundo natural são estudadas pela História Ambiental. Não existe uma visão única sobre a natureza, pois os agentes históricos constroem ideias diferentes sobre o ambiente, forjadas em temporalidades e culturas específicas. No caso da tradição ocidental, muitas vezes ela sedimenta a divisão entre sociedade e natureza.
Por exemplo, a narrativa judaico-cristã, fundada no Antigo e Novo Testamento, afirma que o homem é o único ser feito à imagem e semelhança do Criador, conferindo ao ser humano uma posição hierárquica superior em relação aos demais viventes. Na Bíblia, o texto do Gênesis anuncia que todas as criaturas do Jardim do Éden foram concebidas para o bem estar e a fruição do homem, a quem foi delegado o domínio sobre as demais formas de vida.
Outra matriz importante para a constituição das sociedades ocidentais é o racionalismo europeu, que desde o século XVII afirma uma visão mecanicista do universo, percebendo a natureza como uma realidade externa ao homem, “objeto” que poderia ser livremente manipulado. A partir do século XVIII, com a crescente industrialização e urbanização da Europa, novas sensibilidades começaram a emergir diante dos efeitos negativos da destruição da natureza. Mesmo assim, pensadores e governantes acreditavam que com o “progresso da civilização”, e os avanços constantes da técnica, as distorções geradas pelas atividades econômicas seriam superadas.
Nos dias de hoje muitos ainda cultivam essa crença. Mas o fato é que mesmo com todos os avanços tecnológicos existentes, a destruição da natureza continua em ritmo alarmante, indicando que a humanidade, particularmente sociedades ocidentais ditas desenvolvidas (que são as que mais consomem recursos naturais), precisam rever seus fundamentos culturais, políticos e econômicos.
Retomando o exemplo dos visons, sua criação intensiva para uso no mercado de luxo implica na mais pura objetificação de seres vivos, nascidos e criados, ou “fabricados”, com o único propósito de gerar lucro e suprir um gosto humano. Mas a pandemia de Covid-19 demonstra que o modo como lidamos com a natureza e os outros animais, têm consequências, e elas são muitas vezes imprevistas.
Não vivemos isolados e certamente não sobreviveremos como espécie sem os outros seres que habitam o planeta. Nossa vida, e o nosso bem estar, dependem da vida e do bem estar de outros animais. Mas, para a efetivação desse princípio aparentemente óbvio, precisamos implantar mudanças profundas na forma como pensamos e interagimos com os outros viventes. Se continuarmos avançando sobre os ambientes naturais, destruindo os habitats dos animais selvagens, potencializaremos situações de contato com organismos que podem desencadear novas epidemias/pandemias, com consequências imprevisíveis e possivelmente desastrosas para a humanidade.
Referências:
BBC. Por que animais usados em casacos de pele estão virando preocupação na pandemia – e colocando dúvida sobre o futuro da vacina. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-54883116>.
DUARTE, Regina Horta; OSTOS, Natascha Stefania Carvalho De. As Minas Gerais: gentes e bichos. In: MENESES, José Newton Coelho (org.). Orbe e Encruzilhada. Minas Gerais 300 anos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2020, p.179-212.
LEFF, Enrique. Vetas e Vertientes de la Historia Ambiental Latinoamericana: una nota metodológica y epistemológica. Varia História. Belo Horizonte, n. 33, pp. 17-31, jan. 2005.
*Pós-doutoranda da Fiocruz Minas
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