Cotas como pretexto (1)
Na última década, os debates acerca do acesso às vagas das universidades públicas brasileiras tiveram como principal foco a polêmica sobre a adoção de ações afirmativas, em geral, e das cotas, em especial, rendendo prioridade da mídia e mobilizações tanto de defensores quanto de opositores. O senso comum não costuma distinguir ações afirmativas de cotas, sendo que as primeiras englobam as segundas e são mais amplas do que estas. As cotas são reservas de vagas e as ações afirmativas podem ter também outras características como, por exemplo, estipulando pontuação extra em vestibulares para candidatos com determinadas características (estudantes de escolas públicas, negros etc) – sem reservar vagas.
Alguns dos argumentos elencados (não todos) contra as ações afirmativas são que elas não resolvem, estruturalmente, nem a desigualdade social, nem nossa distribuição de renda concentradora, nem tampouco melhoram as escolas públicas de educação básica. E também não dão conta de superar o racismo, o preconceito e a discriminação. Concordo totalmente com estas opiniões! Os opositores das ações afirmativas usam os tópicos acima para rotulá-las de inócuas ou até de prejudiciais, do que discordo em absoluto. Defendo com convicção a adoção de ações afirmativas e, dentre estas, as cotas. Enfatizo ainda a relevância e a pertinência das cotas de corte étnico-racial, beneficiando negros e indígenas.
Minha argumentação é simples (simplória?). Mesmo que todas as vagas de todas as universidades públicas fossem destinadas às ações afirmativas ainda assim seguiríamos convivendo com desigualdade social, concentração de renda, escolas públicas de educação básica com dificuldades, racismo, preconceito e discriminação. Por quê? Primeiro porque as universidades públicas não estão na origem dos citados problemas. Logo, o embate a estas questões exigem mudanças em muitas outras instâncias e instituições, demandam alterações de ordem sociocultural e econômica bem mais amplas. Segundo porque, pragmaticamente falando, as atuais vagas das universidades públicas brasileiras são poucas. Ainda que fossem destinadas exclusivamente para negros, indígenas e estudantes oriundos da educação básica pública ampla maioria destes permaneceria sem vaga, fora da educação superior estatal e gratuita.
Então, apesar de não ter o poder magnânimo de equacionar nenhum dos problemas citados, me parece que as ações afirmativas têm potencial de incidir sobre todos eles, e servem de pretexto para repensarmos vários assuntos essenciais dos mesmos. Já é possível verificar resultados palpáveis no curto prazo e, melhor ainda, há uma larga margem para transformações mais profundas a médio e longo prazo. Seja frente ao contexto político em que vivemos, seja reconhecendo as limitações das universidades, entendo que as contribuições que listo a seguir legitimam a adoção das ações afirmativas. Na atualidade colhemos ao menos três frutos concretos: o debate aberto; o questionamento à meritocracia; e a universidade com mais “cara de povo”.
É graças às ações afirmativas que estamos enfrentando a discussão, inclusive para fora dos muros da academia, atinentes às nossas compreensões sobre as formas de acesso à educação superior. Seguimos retirando a sujeira debaixo do tapete, desacomodando conceitos adormecidos, tidos como absolutos e inalteráveis. O racismo, por exemplo, deixa de ser assunto abordado apenas ao nos remetermos ao período da escravidão, ao pretérito. É atual, unindo passado e presente em forma de políticas públicas. Isso, em si, já é um ganho para a toda a sociedade.
No conteúdo, o debate desemboca certeiro num ataque contundente à meritocracia tradicional, baseada centralmente no desempenho individual e no acúmulo de informações / conhecimentos / habilidades / competências cobrados por vestibulares e pelo ENEM. Agora, critérios de ordem socioeconômica, histórica e étnico racial compõem uma teia de aspectos que leva às vagas universitárias. Fatores coletivos de pertencimento a determinadas parcelas da população são decisivos na alocação dessas vagas, como nos casos em que ser indígena (indicado por sua liderança) pode definir o ingresso numa universidade, passando por fora do vestibular convencional.
Outro elemento visível é que as universidades já estão ficando menos brancas, mais “coloridas”, com menos classe média e alta, com mais “povão”, com mais gente oriunda da classe trabalhadora, com mais negros e indígenas pelos corredores. E ainda vamos além. Pra ser mais exato, em 2016, ao menos metade dos estudantes das instituições federais, de todos os cursos, em todos os turnos, serão oriundos de escolas públicas e, com perfil étnico racial semelhante ao da população em geral. Imagine todos os cursos federais de medicina com 50% de estudantes advindos das escolas estatais. Não é sonho ou devaneio, não é suposição ou utopia. Será realidade, no ano que vem! E estes são resultados nada desprezíveis, tanto do ponto de vista concreto, seja de um ângulo simbólico. No mais, estas novas modalidades de triagem de estudantes reforça as universidades em seu papel crítico, apontando sensibilidade com o coletivo e responsabilidade social, mesmo que contra o senso comum, contra a grande imprensa. Pra mim, isso já bastaria para sustentar a defesa das ações afirmativas e das cotas.
Sim, discriminação positiva, projeto de justiça social, ensaio de reparação histórica, esboço de sociedade igualitária, para além dos parâmetros estritamente liberais da concorrência de mercado, aberta, simples, de um cidadão contra outro. A mera existência das cotas e das ações afirmativas já escancara um novo elemento interpretativo: a meritocracia clássica é injusta. Vestibulares e ENEM, nos moldes anteriores, não tratavam os candidatos em igualdade de condições. E isso porque se reconhece que as condições dadas para diferentes grupos fazia com que alguns fossem privilegiados em detrimento de outros. Depreende-se que vestibulares e ENEM não são, em si, instrumentos neutros de medição, e transformam diferenças em desigualdades. Não são caracterizados apenas pela técnica e pela objetividade, pois estão a serviço de objetivos e atendem a perfis idealizados que são sociais, temporais, tem viés político ideológico, são de classe. Essas são interpretações em disputa, certamente, mas as regras do jogo vigentes – cotas e ações afirmativas – já abalam, de saída, pressupostos essenciais dos modos tradicionais de seleção.
No mês que vem, aqui no Pensar a Educação em Pauta, seguirei com a argumentação pró cotas / ações afirmativas, explorando aspectos que acredito serem interessantes para considerarmos o potencial de modificações estruturantes decorrentes de sua implementação. Alguns deles podem vir a se constituir como “efeitos colaterais”, inesperados, pouco pautados, mas de resultados com capacidade para abalar alguns fundamentos da educação brasileira. Será? Até maio!
PS. No artigo que publiquei aqui em março de 2015 falei sobre o novo Ministro da Educação, Cid Gomes. Agora que temos outro ainda mais novo– Renato Janine Ribeiro – até pensei em voltar ao assunto… Mas deixei isso pro blog, tentando não ser monotemático… Assim, se alguém se interessar por seguir na questão é só acessar o www.notasvermelhas.com.br