Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”
Ano III – Edição 073 / sexta-feira, 13 de março de 2015
O Mulato, de Aluísio de Azevedo
Alessandra Frota Martinez de Schueler
“Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito crespos, lustrosos e crespos, tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sobre a negrura do bigode; estatura alta e elegante, pescoço largo, nariz, direito e fronte espaçosa. (…)
Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão; falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.”
(Aluísio Azevedo, O Mulato. São Paulo, Ática, 1998, p. 50)
Há muito a literatura tem sido utilizada como testemunho, narrativa que, longe de retratar a “realidade tal como ela aconteceu”, nos ajuda a imaginar, a articular e a reinventar, juntamente com a ficção literária, situações históricas e contextos possíveis, verossímeis. Isto porque considerar a literatura como fonte para a escrita da história implica tanto em alargar as possibilidades como alertar para os condicionamentos e as condições de produção do próprio saber historiográfico: sempre limitado, situado, dependente de tempos, espaços, lugares de inserção, relações no campo de forças e das condições de inteligibilidade do próprio historiador. A literatura nos permite, ainda, levar em conta modos singulares de existir e de expressar, de ser, de estar e de criar/ interpretar o mundo social. A fala das personagens, os acontecimentos, as vozes singulares e coletivas, a multiplicidade das situações e experiências inventadas pelo escritor, as relações entre os personagens, tudo isso, nos faz refletir sobre tudo aquilo que escapa, que resiste às investigações históricas tradicionais de pertencimento coletivo e/ou às experiências singulares de indivíduos, homens e mulheres, no tempo. Por meio do cruzamento de fontes literárias com uma série múltipla e fragmentada de outras fontes documentais, é crível ler as “falas humanas”, para que não sejam passadas sob o silêncio, mas que sejam submetidas (e escutadas), reconstruídas sob o revestimento diligente da escrita historiadora.
Como fizeram Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira (1998), é possível tomar a obra literária como um problema histórico a ser explorado e analisado, inserindo-a no movimento da sociedade, investigando suas redes de interlocução para destrinchar, não sua suposta autonomia em relação à sociedade e ao autor, mas sim a forma como estes constroem e representam a sua própria realidade social. É com essa perspectiva em relação ao uso da literatura na produção da História, e da História da Educação, que tomo aqui, brevemente, a obra O Mulato, e seu autor, Aluísio Azevedo, como um caminho para refletir sobre algumas problemáticas específicas, vivenciadas por ele em sua ambiência histórica e social.
Publicado pela primeira vez em São Luís, O Mulato se apresentou definitivamente ao público leitor em 9 de abril de 1881, numa manhã de sábado, impresso em 248 páginas, com 1.000 cópias (todas vendidas a 3.000 réis cada exemplar) pela tipografia do jornal O País. Nos meses que antecederam à edição, a personagem central da obra já era conhecida dos leitores por uma estratégia de divulgação inovadora utilizada pelo escritor, que publicava anúncios e notinhas no jornal O Pensador, do qual era um dos redatores-chefes, noticiando a chegada de Raimundo do estrangeiro à cidade de São Luís. Entrecruzando fatos reais – como o embate anticlerical e republicano, há muito travado por Aluísio Azevedo na imprensa regional –, e a sua criação literária, o autor produziu uma campanha publicitária, que aguçou a curiosidade dos leitores e alimentou o tom de disputas por modos de pensar a política e a sociedade naquele contexto. Tamanho impacto de O Mulato na província maranhense que, além das críticas e da audiência de mais de 800 pessoas na redação do jornal O País na véspera do lançamento do livro, o escritor conseguiu aumentar sua fama de “maldito” entre círculos literários e aos olhos mais conservadores. Foi acusado, à época, de associar as suas personagens à vida real e concreta de pessoas conhecidas e influentes da cidade de São Luís.
Não por acaso as temáticas centrais presentes no romance eram as mesmas que agitaram mentes e corações da chamada “geração de 1870”: o anticlericalismo, os abusos da Igreja, a “má conduta” social e sexual de cônegos e padres; o adultério; a hipocrisia das elites conservadoras e as contradições entre os dogmas da fé; a pluralidade das experiências humanas urbanas (escravos, livres, libertos), incluindo a condição social das mulheres de camadas médias; os conflitos políticos entre monarquistas, conservadores, liberais e republicanos; o suposto “atraso” das províncias do Norte versus a visão científica e sociológica positiva do “progresso” e da realidade social; e, no auge da luta e da campanha pública, os abolicionismos (moderados, radicais e populares) e a correlata emergência do racismo científico, um novo modo de produção, e justificativa legitimada, das hierarquias e das desigualdades do mundo social. Não por acaso, também, a obra foi aplaudida e festejada no circuito literário da capital do Império, publicada com modificações no Rio de Janeiro, em segunda edição, no ano de 1889, pela prestigiada editora Garnier.
Raimundo é a personagem central da trama de O Mulato, em torno do qual o romance de Aluísio Azevedo buscava construir a ambiência social da cidade de São Luís do Maranhão, com a descrição detalhada do cotidiano urbano e das experiências de vida de homens e mulheres, escravos e livres, de trabalhadores nacionais e portugueses, como os caixeiros e aprendizes, de ilustres e influentes famílias de comerciantes e proprietários rurais escravistas, de padres e cônegos, “senhoras beatas e fofoqueiras”. Sob a lógica da literatura experimental e realista, os homens, como produtos do meio, de sua origem, da raça e da natureza, experimentaram suas vidas no espaço determinado da cidade e do tempo histórico representado pelo romance. Nesta São Luís, pobre e calorenta, que a trajetória de Raimundo, o Mulato, doutor de Coimbra, vindo do estrangeiro, tem seu início.
Raimundo nasceu de ventre escravo e foi forro à pia, fruto da relação ilegítima entre uma cativa, a preta Domingas, com o traficante de africanos, o português José Pedro da Silva. Uma história bastante semelhante, aliás, bem o sabia Aluísio Azevedo, a de vários outros “mulatos” e afrodescendentes no Brasil oitocentista (como, por exemplo, a de José do Patrocínio). Herdeiro de boa fortuna amealhada por seu pai no tráfico atlântico, ainda criança, Raimundo foi enviado para estudar em Portugal. Em Lisboa, Raimundo frequentou os melhores colégios e estudou Direito, na Universidade de Coimbra. Na universidade participou ativamente da sociabilidade estudantil, dos amores juvenis e da vida intelectual da cidade: “escreveu sátiras”, “atirou-se aos versos líricos, cantou o amor em todos os seus metros”. Depois “vieram-lhe ideias revolucionárias, meteu-se em clubes incendiários. Foi orador exímio e foi infectado pela “febre dos jornais”, escreveu com entusiasmo sobre todos os assuntos, do artigo de fundo à crônica teatral.” (Azevedo, 1998, p. 71). Intelectual humanista típico oitocentista, oriundo de formação jurídica clássica, distinguiu-se na Academia, se tornou estudante “muito estudioso e sério”. Viajou pela Europa. Representado como homem letrado, bem educado, rico e virtuoso, Raimundo regressou ao Brasil (primeiro ao Rio de Janeiro, depois a São Luís), disposto a vender as terras que herdou e a administrar seus bens para bem se estabelecer como advogado na capital do Império. Ao chegar na terra natal, Raimundo viveu a ambiguidade de ser um homem bem sucedido, belo, rico e letrado, porém, com “defeito de cor”, mulato e de origem escrava. De sua origem e infância, Raimundo lembrava-se pouco.
Como não poderia deixar de ser no romance, ele logo cai nas graças de sua prima, Ana Rosa que, arrebatada, declara-lhe seu amor. Raimundo corresponde à paixão da prima, mas os jovens encontram fortes obstáculos para o enlace. Principalmente, a oposição de Manuel Pescada, que queria a filha casada com Luís Dias, da avó Maria Bárbara, racista intransigente, e do Cônego Diogo, velho “amigo da casa” e adversário ardiloso de Raimundo. Obcecado por desvendar suas origens, Raimundo insistiu em visitar a fazenda onde nascera. Após diversos adiamentos, seu tio finalmente o levou até a Fazenda São Brás. No caminho, o mulato obteve as primeiras informações sobre o passado trágico de seus pais e conheceu sua mãe, a então forra, Domingas. Na estrada, ao pedir ao tio a mão de Ana Rosa em casamento, viu-se recusado. Perplexo, Raimundo descobriu que a recusa se deveu a suas origens escravas. Ao retornar à capital do Maranhão, Raimundo resolveu voltar para o Rio de Janeiro. Pouco antes do embarque, mandou uma carta a Ana Rosa confessando seu amor. O amor pela prima o impediu de partir. Os amantes se encontraram e Ana Rosa engravidou. Armaram um plano de fuga. No entanto foram impedidos pelo Cônego Diogo, que usou das confissões de Ana Rosa e da colaboração subserviente do caixeiro Dias. No momento em que planejavam partir, os amantes foram surpreendidos. Raimundo, ao abrir a porta de sua casa, foi atingido nas costas por um tiro disparado por Luís Dias, com uma pistola que lhe emprestara o Cônego Diogo. O fino, rico e letrado Mulato, impedido de realizar o casamento com uma mulher branca, na sociedade escravista maranhense, morre no final da trama.
No romance, o anticlericalismo radical, a denúncia grave sobre a emergência do racismo científico (as marcas insolúveis da “hereditariedade e do lugar inferior” de descendentes de escravos na hierarquia racial) e o recrudescimento da campanha abolicionista constituíram os eixos condutores evidentes das críticas sociais de Aluísio Azevedo. A ação política e a experiência social do escritor, sem dúvida, podem ser lidas e interpretadas, por meio da análise do conjunto de sua produção artística (ilustrações, artigos, folhetins, romances, panfletos, peças teatrais, entre outras), pelo historiador social, como uma fonte indispensável para a construção do conhecimento histórico. Autores, como escritores, são considerados um tipo de intelectual, cujo trabalho envolve, necessariamente, a preocupação estética com a linguagem. Seja declaradamente, ou não, um defensor da “arte pela arte”, seja um autodeclarado engajado, autores e escritores veiculam ideias, valores e opiniões, através de um tipo de escrita em que forma e conteúdo são indissociáveis (Facina, 2004).
Atualmente, ao reler o romance azevediano, para além do prazer da leitura, como historiadora e pesquisadora em História da Educação, tenho me interessado, particularmente, pelo contexto de produção da obra e o embate de ideias nela contida sobre as reformas sociais em pauta, tais como: a abolição da escravidão, os debates sobre a instrução pública e a atuação de escritores, professores e intelectuais nas propostas e iniciativas de escolarização e ou difusão do ensino primário e profissional para as classes pobres e trabalhadores, brancos e negros, em meio à circulação de discursos “racializados” e de difusão de teorias raciais então consideradas científicas. Temática racial, aliás, que merece ser aprofundada, e problematizada, como diria Carlo Ginzburg, por meio do “fio e dos rastros” da personagem, que constitui a tessitura central do texto azevediano: o mulato Raimundo, o Mundico, Mundico da Silva. Personagem tão conhecida pelos contemporâneos do escritor, mas, ao mesmo tempo, ainda tão ausente das nossas preocupações de pesquisa e ensino em História da Educação.
Para ler mais:
AZEVEDO, A. O Mulato, São Paulo, Ática, 1998.
CHALHOUB, S.; PEREIRA, L. A. M. (orgs). A História Contada. Capítulos de História Social da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.
GINZBURB, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Cia. Das Letras, 2007.
FACINA, Adriana. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.
FERREIRA, C. D. C. O Mulato, de Aluísio de Azevedo, um romance, duas versões (1881-1889). Dissertação em Letras, Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.
MÉRIAN, J. Aluísio Azevedo: vida e obra (1857-1913): o verdadeiro Brasil do século XIX. São Paulo, Editora Espaço e Tempo, 1998.
VIEGAS, L.M. Nas linhas da literatura: um estudo sobre as representações da escravidão no romance O Mulato, de Aluísio Azevedo, Dissertação de mestrado em História, UFMA, 2008.
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