CL – Nº 72 – 06/03/2015

Leitura: modo de usar III – Eliane Marta Teixeira Lopes – EXCLUSIVO

Informativo semanal do projeto “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”

Ano III – Edição 72 / sexta-feira, 6 de março de 2015 

Leitura: modo de usar

Eliane Marta Teixeira Lopes

Lemos. Mas sabemos, depois, o que lemos? O quanto nossa memória preserva daquilo que lemos? Ao menos, quantos títulos? Matéria da neurologia, da psiquiatria, da psicanálise, a memória é nossa aliada e nossa inimiga. Não a controlamos – aquelas palavras de amor que escuto agora, até quando as memorizarei? Mas por que aquela repreensão, e não outra, me atormenta até hoje? Para Umberto Eco, a memória, individual ou coletiva (a cultura), conserva mas também relega ao esquecimento informações que não nos servem. Ou seríamos, e mesmo a cultura, uma espécie de Funes atravancando o mundo. Irineu Funes, personagem do conto de Jorge Luis Borges, Funes, o memorioso. Para os que se esqueceram, conto-o à minha moda, já que a história não é complicada. É assim:

1.    Meio século depois do acontecido, há um narrador que conta a história, que não tem outro argumento que o diálogo entre si e Funes.

2.    No verão de 84, o narrador passeava a cavalo com seu primo (Bernardo), cruzaram-se com um rapaz a quem o primo pergunta as horas e que lhe responde precisamente: faltam quatro minutos para as oito. Este era Irineu Funes.

3.    No verão de 87, o narrador volta ao lugar de veraneio e para mostrar que de nada se esquecera pergunta pelo “cronométrico Funes”. Derrubara-o um cavalo bravo, caíra de um cavalo bravo e jazia paralítico sobre um catre.

4.    O narrador traz consigo livros para o estudo metódico de latim, que empresta a Funes, a pedido deste em carta na qual recordava detalhes do primeiro encontro.  

5.    Dado que o narrador deve retornar a Buenos Aires, vai à casa de Funes pedir-lhe de volta os livros que lhe emprestara e é neste encontro que se dá o diálogo, argumento da narrativa.  Mais do que um clássico diálogo, Funes descreve seu abarrotado mundo, seu vertiginoso mundo com todos os detalhes que uma prodigiosa memória vai compondo; o narrador não reproduz as palavras, preferiu resumi-las com veracidade. Este diálogo dá origem ao título do conto, Funes, o memorioso; o personagem já não é mais o cronométrico.

6.    A última frase noticia ao leitor sem intermediários: Irineu Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.

 Morreu sem ar. Abarrotado.

 O diálogo entre Umberto Eco e JCC sobre a memória e seu uso contemporâneo, segue um caminho interessante, no meio do qual surge a suposição, que tem ares funestos (ai!). “Quando tivermos ao nosso lado um criado eletrônico capaz de responder a todas as nossas perguntas, mas também aquelas que não podemos sequer formular, o que nos restará para conhecer? Quando nossa prótese souber tudo, absolutamente tudo, o que devemos aprender ainda?” “A arte da síntese.” “Sim, e o próprio ato de aprender. Pois aprendemos a aprender.” (…) “Então o conselho que dou aos professores é pedir a seus alunos, no caso de um dever de casa, que façam a seguinte pesquisa: a propósito do assunto sugerido, descubra dez fontes de informações diferentes e compare-as. Trata-se de exercitar seu senso crítico face à Internet, de aprender a não aceitar tudo como favas contadas.” Sobre indicações de obras “imperdíveis” e aquelas que na Itália chamam de “cozidos e comidos”, fabricados em função dos acontecimentos e oportunidades, UE formulou a teoria da dizimação: “Tomemos o domínio dos ensaios. Basta ler um livro em cada dez. Para os outros você se reporta à bibliografia, às notas, e percebe imediatamente se as referências dadas são sérias ou não.” Que não nos escutem nossos orientadores. Há, então, “uma delegação de uma parte da memória a livros, a máquinas mas subsiste uma obrigação de saber tirar o melhor partido de suas ferramentas. E, por conseguinte, de conservar sua própria memória”.

 Vamos usando todas as ferramentas, e vemos sob nossos olhos, o passado se modificar e o futuro ficar cada vez mais misterioso – depois do fax, quem podia imaginar mais alguma novidade? Por sorte estamos livres de imaginar; tudo acontece tão depressa que não precisamos imaginar mais nada, alguém imaginou e fez por nós.

 Mas há o Alzheimer. Essa praga do século XX e XXI que pode fazer com que olhemos as lombadas dos livros, suas imagens sem que elas nos digam nada; nem curiosidade. Para combater a praga, UE disse decorar um poema todas as manhãs e continuar a aprender. Diante da notícia de que o Alzheimer rejuvenesceu e pessoas de 45 anos podem ser vítimas dele, esconjura: “Muito bem. Então vou parar de decorar os poemas e passar a beber duas garrafas de uísque por dia. Obrigado por ter me dado uma esperança. ‘Merdra!”, como diz Ubu”. Luiz Alfredo Garcia-Roza no seu último romance – que é ótimo – cria um personagem (me esqueci o nome, juro) que padece da síndrome de Korsakoff, cujos sintomas, até então desconhecidos para mim, levam o pobre tradutor de Edgar Alan Poe a ter alucinações, confabular, e ter amnésia tanto a ante retrógrada quanto a retrógrada.  Seu trabalho de tradutor recomeçava a qualquer momento, mas desconhecia o conteúdo e dificilmente reconhecia pessoas e situações que viveu com elas. Mesmo as muito prazerosas. Padecimentos inimagináveis.

 O que nos resta da leitura não tem resto, é ela, naquele momento, único, como cada ato sexual de nossa vida, em que o número de páginas, frases, palavras e letras do livro, o tamanho da mancha na página, o intervalo entre as linhas, o enredo, o pacto com o autor, nos leva a uma outra realidade, outro plano. Não importa em qual suporte.

 Belo Horizonte, 26 de dezembro de 2014. Última sexta feira deste ano.

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