Cê não vai aguentar bater de frente com uma travesti

Aline Cecilio da Silva
Marcos Ribeiro Mesquita

Bianca Manicongo, popularmente conhecida como Bixarte, apresenta-se como “atriz e cantante”. Poeta nordestina, rapper paraibana, pessoa trans não-binária, descobriu-se na arte através da poesia marginal. A artista é dona do EP Revolução (2019) e do disco Faces (2020), produções musicais em que ela canta sua travestilidade, religiosidade, amor, os desafios de viver enquanto um corpo gordo, “monstruoso”, ao mesmo tempo em que constrói um trabalho de resgate ancestral.

“Quebrando a normatividade, como afirma em sua música intitulada Gordo Week, posicionando-se contra a cultura hegemônica e evocando um lugar de autoafirmação, Bixarte ocupa espaços. A cantora é conhecida por apresentar uma sonoridade diversa, incorporando sua revolta e sua radicalidade em posicionamentos sempre muito bem direcionados em seus versos. No single Travesti no comando da nação, ela declara o fim desse milênio que fabricou a intolerância multiplicada sobre seu corpo em tom de manifesto, apropriando-se de uma epistemologia feminista negra, fruto de uma série de saberes produzidos por mulheres negras, que, assim como ela, estão na luta diária por supravivência. Na poética de suas letras, fica explícita a problematização de concepções não-binárias e a necessidade de legitimidade de seu corpo-existência, que, por si só, grita por respeito e pelo direito de existir. Sua poesia é o grito, não mais preso, que encoraja outras travestis a dizerem em voz alta o que ela afirma na música acima: “respira e me chama de Senhora travesti”.

Ao expressar sobre a disputa significativa que é habitar este tempo-espaço enquanto uma mulher negra, periférica, travesti, ela complexifica o debate da interseccionalidade, problematizando o fato da sociedade e o Estado estarem sempre querendo privatizar esses corpos em detrimento de um padrão: “Seja magro, não coma isso, faça isso, aqui não”. Além disso, a artista, constantemente, aponta as emergências políticas articuladas à dimensão racial, que atingem esses corpos de diferentes maneiras, inclusive, através de “seus fuzil (…) de palavra”.

Enxergando a dimensão racial como um elemento chave para compreender as outras formas de opressão que marcam seu corpo, atravessado principalmente pelas questões de gênero e classe, é possível observar como Bixarte sempre se posiciona enquanto um corpo negro e favelado, compartilhando os encantamentos, resistências e lutas de estar nessa pele. Quando a artista canta em Liberdade sobre seus receios em estar no front, por ter a consciência racial de saber como funciona as dinâmicas da sociedade para quem é negra/o e pobre, afinal, “A vida é incerta pra quem é margem”, ela se refere a uma realidade cotidiana, mas que também seria o seu pessoal político. Saber que é preciso possuir disposição para “bater de frente” se alia à compreensão de que “ser bicha é força, mas nem sempre é vantagem”, como ainda esboça o verso da música, porque não se tem apenas beleza na forma de resistência.

Trazendo à tona o debate que coloca em evidência a ideia de corpo como território político ocupado, observamos em Bixarte a intenção em abordar abertamente a transgressão do padrão branco, alto, magro, tido como universal e sua influência em corpos gordos, negros, trans e, principalmente, afeminados. Ao cantar em Gordo week sobre uma arte que tem como principal referencial as corporeidades gordas e travestis, ela faz um movimento de afirmar politicamente esta condição. A partir de sua música, ela enxerga e expressa o próprio corpo enquanto instrumento de questionamento do padrão, de quebra da normatividade, entendendo que a corporeidade é motor para a produção de conhecimentos que perpassam as especificidades de suas vivências. Bixarte escreve com o próprio corpo como propõem Érika Oliveira, Laura Bleinroth e Yasmin Silva neste texto. Ela toma essa corpografia enquanto urgência e marca de sua arte.

Existências como a de Bixarte, são responsáveis pelas diversas faces que resistem entre as encruzilhadas para não padecerem “enganadas, silenciadas, cuspidas, miradas”, como declamado em sua música Faces. Sua arte representa a expressão de uma radicalidade revolucionária, um giro que complexifica a existência de corpos negros, gordos, travestis e femininos, transformando a interseccionalidade enquanto instrumento guia para o entendimento das disputas que são abordadas em suas produções musicais. Bixarte, ao vestir seu corpo político enquanto figurino principal de sua arte e inspiração para os seus versos, nos coloca em reflexão: “Será que a sociedade atual irá aguentar bater de frente com uma travesti?” Num momento de alívio e respiro pós-eleições presidenciais, em que um projeto político democrático venceu, Bixarte certamente é uma de nossas inspirações para a reconstrução do país, considerando a marca popular, negra, periférica e trans-feminista que sua arte possui.

Sobre a autora
Aline é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Integrante do Núcleo de Estudos em Diversidade e Política (EDIS). Participa do Programa de Educação Tutorial (MEC) e integra o Centro Acadêmico Carolina Maria de Jesus (CApsi).

Marcos é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Coordenador do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS).


Imagem de destaque: Autoria de Katie Rainbow retirada do site Unsplash.

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