Cada um e a televisão brasileira – Eliane Marta Teixeira Lopes e Mirian Chrystus

Cada um e a televisão brasileira

Eliane Marta Teixeira Lopes

 Ao contrário do que alguns dizem, assistir televisão não é um ato passivo. Escolhemos o dia, a hora, o canal, o programa. Tem aí algo do sujeito e tem aí algo da Cultura e das culturas (familiar, escolar, religiosa etc). Há alguns domingos escolhi ficar em casa e quando me dei conta estava zapeando desde o canal 2, NBR até voltar ao mesmo – não, não tenho todos os canais possíveis.

Zapear é o ato de mudar rápida e repetidamente de canal de televisão ou frequência de rádio, de forma a encontrar algo interessante para ver ou ouvir, geralmente através de um controle remoto. Mas, curiosamente, zape é  o som provocado pelo entrechoque de espadas ou afins – disseram a Wikipedia e o Houaiss.

E nesse domingo tive surpresas agradabilíssimas percorrendo canais, digamos, não consagrados (sic). Na TV escola (confesso que não sabia que existia) assisti a dois documentários muito bem feitos sobre os grandes educadores brasileiros Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo. Na sequência do programa, um especialista explicava como os professores poderiam utilizar aquele material em sala de aula. Parti para outro. Assisti a um belo concerto no Arte1 – que maravilha essa canal! Um canal de arte para quem gosta de arte.   Quem não gosta? No NBR assisti a um debate entre professores universitários, e ao contrário do que se possa pensar, não havia propaganda do governo. Até descobri que BH tem um canal de TV – que, às vezes passa alguma coisa interessante. Percebi que há muitos programas, em horários e canais diferentes, sobre cozinha, isto é, em que alguém ensina a cozinhar – como e por quê descobriram que isso poderia ter algum apelo? E tem?  Etc. Como não foi ontem, o tempo decidiu o que a minha memória reteria. A memória apaga aquilo que para o sujeito não tem importância. O excesso de informações faz com que haja um transbordamento e uma depuração. A memória também é um esforço. Vale uma conversa mais comprida…

Como disse acima, assistir televisão não é um ato passivo. Escolhemos o dia, a hora, o canal, o programa, e o tempo todo estabelecemos um diálogo com o que assistimos, ou com quem está ao lado sobre o que se assisti.  Já fui uma noveleira de carteirinha, mesmo que no dia seguinte ao capitulo final sequer sabia o nome da novela. Agora não sou mais – mudou o Natal ou mudei eu? Às vezes há pouca diferença entre um capítulo e uma notícia do JN. Eu e minha amiga Mirian às vezes assistíamos juntas e comentávamos o desempenho dos atores e atrizes, a marca do diretor (isso era ela quem sempre sabia), o cenário, os diálogos, tudo passava pelo nosso crivo de interessadas.  Até que nossa indignação com certo capítulo da novela Mulheres Apaixonadas nos levou a escrever e a publicar  o que sentimos e pensamos. Esse é o texto que vocês lerão a seguir. Está desatualizado após 10 anos (já!)?  Não creio. A todo dia a própria televisão nos mostra que a violência contra as mulheres continua em moda e em alta em todas as classes sociais – infelizmente.  Debater o que vemos na TV é papel de todos nós, mas especialmente de professores e professoras que acreditam que a educação se dá não apenas na sala de aula e todos são responsáveis por ela. Quem sabe nesse espaço de Pensar…  inauguramos uma coluna de crítica à TV nossa de cada dia? Cada um, cada uma gosta e não gosta de coisas diferentes – vamos falar disso, expor o que pensamos.

Mulheres apaixonadas  (e espancadas)

Mirian Chrystus

Eliane Marta

            Um homem entra no quarto de uma jovem, sua filha, “para conversar” sobre problemas de comportamento da moça. Diante da resistência, das respostas desrespeitosas, o pai tranca a porta, tira o cinto e espanca-a. Na saída, aconselha-a, quando for mãe, a ser enérgica – para que os filhos não se tornem, mais tarde, pessoas cruéis como ela. 

            A cena aconteceu na novela “Mulheres Apaixonadas”, segunda-feira, dia 14 de abril   (a novela foi ao ar entre 17/02/2003 – 11/10/2003). Muitos telespectadores exultaram com a cena do espancamento – afinal, a tal Dóris é mesmo uma peste. A garota é ambiciosa, interesseira, maltrata os avós com grosserias, rouba-lhes dinheiro, humilha-os pelas despesas que (às vezes) dão à família. Os velhinhos são aniquilados; em revanche, os telespectadores jubilam-se com a surra aplicada à jovem vilã.

            Não é a primeira vez que Manoel Carlos constrói uma trama discursiva dentro de uma novela levando os espectadores a um corredor em que, ao final, muito provavelmente reagirão na direção que o autor lhes aponta. Em “Laços de família”, a personagem Capitu, notoriamente de sua estima, foi delineada de tal forma, boa filha, excelente mãe, uma certa dose de ingenuidade, que, ao final, os telespectadores afirmavam não ter ela realmente outra escolha na vida que não ser “garota de programa”. E mantiveram sua simpatia pela personagem.

            Agora, o autor faz o jogo contrário, porém, dentro da mesma lógica: elabora a personagem tão “chapada”, tão sem nuanças – má o tempo todo,  incapaz de um gesto sequer de cordialidade ou simpatia- que a condena antecipada e “merecidamente” ser espancada. A lógica da narrativa da novela é a mesma dos discursos jornalísticos quando noticiam a morte violenta de mulheres de comportamento transgressor ou inadequado a certos parâmetros de boa conduta. As reportagens policiais costumam condenar ao “destino merecido” já no lead, o primeiro parágrafo da matéria.

            Curiosamente, no mesmo capítulo, outra mulher, Raquel, a professora de Educação Física se abre com Helena, diretora da escola em que trabalha, e confessa estar fugindo de um marido violento que a espancou várias vezes. Helena  aconselha-a a denunciar o marido para que outras mulheres não venham a passar o mesmo nas mãos dele. O problema não é só dela, pondera Helena, sintonizada com uma nova postura social diante da violência contra as mulheres.

            Aqui emerge uma questão interessante: o marido espancador deve ser denunciado; o pai, compreendido. Mas não são ambos atores da mesma cena, o espancamento de uma mulher? No caso da cena entre Dóris e seu pai, o argumento para justificar o espancamento é oferecido por ele mesmo: age daquela forma porque falhou, ao longo dos anos, no exercício de sua função paterna. Ou seja: a garota está sendo “exemplada” porque ele, pai,  não agiu adequadamente. Talvez possamos perguntar: quem irá exemplá-lo?

             Cenas como essa são discursos ficcionais, representações de uma certa realidade contemporânea – os personagens são “construtos” de seus autores, desempenham funções na narrativa. A telenovela faz parte da chamada “indústria cultural”, presa a compromissos comerciais, aferições de audiência, etc. Assim, não se pode complicar muito o desenho das personagens pois corre-se o risco do telespectador não entender, mudar de canal, e adeus pontinhos do Ibope que vão migrar para outro canal. E lá se vão os anunciantes, lá se vai o capital. Mas o telespectador não é passivo, e dependendo do contexto em que ele vive, vai produzir essa ou aquela “leitura” da cena.  Um produto cultural qualquer, livro, filme, telenovela, tem que estar conectado às demandas do público, seus desejos. Mas também aponta para ele mesmo, sua linguagem, sua inserção na história do “gênero” a que pertence.

             No caso em questão, a cena se insere numa tradição romanesca e social de culpabilizar a vítima feminina do espancamento ou da morte violenta. A terrível frase “ela mereceu” ecoa ainda nos nossos ouvidos e não apenas porque está nas ficções. Mas não tem que ser necessariamente assim. “Malu Mulher”, em outros tempos, abordou com complexidade vários problemas. Hector Babenco, em Carandiru, preso a todas as regras da engrenagem da indústria cultural cinematográfica, dirigiu um filme que mostra “compaixão” pelos personagens (não os mistifica). E foi recorde de público do cinema nacional na estréia.  O próprio Manoel Carlos na novela atual, mostra com complexidade alguns personagens masculinos que são frágeis e, ao mesmo tempo, fazem críticas contundentes a algumas personagens femininas, principalmente à obsessão de viver um grande amor: “Eu só quero ser feliz!”, repetem todas à exaustão. O marido da apaixonadíssima Heloísa (e também suas irmãs) cobra-lhe fazer um tratamento para curar essa doença, esse amor excessivo – que, ao contrário do que ela pensa, fere, mata, sufoca. Téo, o marido de Helena, quando esta lhe fala que o casamento sempre fora uma mentira, lembra-lhe que foi mentira para ela, porque ele sempre a amou. Como ele só foi comunicado dez anos depois que era tudo “uma mentira”, dá margens a que se pense em um homem traído, para além e mais profundamente de cenas de adultério. Helena, personagem principal, está sendo desenhada como solidária, competente profissionalmente, porém indecisa e …não muito leal. Resta saber se sua face calma e controlada dará conta de esconder isso o tempo todo.

             Pensar em uma construção mais complexa de personagens, não significa perder a noção do lugar em que uma telenovela ocupa na vida social: um entretenimento para os que estão em casa, cansados, depois de um dia de trabalho ou de tédio. Como falou alguém, de forma mordaz: “A novela das oito é o ápice da vida classe média.” Mas não por isso as situações têm que ser desenhadas de forma “chapada”, o mundo dividido de forma maniqueísta em bons e maus. Para tratar do problema da velhice, Manoel Carlos não precisava crucificar uma personagem, calcado em velhos estereótipos. O espancamento não é nem nunca foi solução para nenhum dos problemas que se enfrenta ou se enfrentou, doméstica ou publicamente.  Nem precisava elaborar um produto que tenta controlar  a possibilidade de leituras diversas de uma situação. Ainda bem que, como os sujeitos, os olhares são diferentes e as pessoas que talvez se identifiquem com a situação (e são muitas, certamente) possam encontrar outra saída para esse problema, grave mas muito delicado.

Belo Horizonte, abril de 2003.

Mirian Chrystus é jornalista e professora  de Comunicação Social na UFMG e Eliane Marta é escritora e psicanalista.

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