Francisca Patrícia Pompeu Brasil
Em 07 de setembro de 1822, o Brasil deixou de ser uma colônia portuguesa e se tornou uma nação. A partir de então, essa data tornou-se símbolo da busca de um povo por sua identidade. No ano em que se comemora o bicentenário da Independência, somos instigados a perguntar: O que significa “ser brasileiro”, em um contexto de crises econômicas, sociais e culturais? A resposta a essa pergunta encontra-se na compreensão de três conceitos básicos: nacionalidade, identidade e pertencimento. A partir desses conceitos, é lícito entender que “ser brasileiro” não se resume a compartilhar costumes, língua e tradições; vai muito além. É cultivar o sentimento de pertencimento a uma coletividade; é reconhecer-se como parte de um povo que se distingue de muitos outros povos por seus elementos diversos, mas que o tornam único.
No entanto, para que o brasileiro consiga reconhecer-se em sua alteridade, é necessário que haja um trabalho de conscientização, o qual desperte o seu senso crítico e o torne capaz de resistir ao processo de aculturação, uma vez que os discursos de poder “outremizaram” a existência dos povos colonizados. No Brasil, mesmo após duzentos anos de independência, ainda se faz necessário combater o “outramento”. Tal conceito diz respeito à forma como os discursos de poder representam “o outro”, no caso, o colonizado: como um ser inferior e diferente, dominado e excluído, que precisa se adequar aos costumes e regras do Outro mais poderoso, perdendo, assim, sua essência e sua identidade.
Sendo a hegemonia discursiva uma das principais ferramentas de dominação, o que se identifica é uma tentativa de apagamento dos elementos identitários das classes oprimidas, como forma de fortalecimento das classes dominantes – fortalecimento esse que resulta, em grande parte, da criação de estereótipos de raça, classe e gênero, os quais desvalorizam aqueles que não se adaptam aos modelos apresentados como ideais. Por outro lado, reconhecemos que a imposição de discursos outros fez surgir as chamadas vozes de resistência na literatura brasileira.
É legítimo afirmar que a resistência ao processo de aculturação vem sendo um dos principais projetos de intelectuais e escritores durante o período pós-colonial. Podemos citar, como exemplo, o projeto nacionalista romântico, desenvolvido na primeira metade do século XIX. Foi nesse período que grandes nomes da literatura brasileira incumbiram-se de construir a nossa identidade cultural. Basicamente, o interesse desses escritores era buscar, na diversidade de culturas do amplo território nacional, elementos que despertassem no brasileiro o sentimento de pertencimento e de orgulho à pátria. As obras nacionalistas de Gonçalves Dias e de José de Alencar podem ser citadas como exemplos dessa busca, uma vez que exaltavam as belezas naturais da recente nação, e enalteciam a coragem, a nobreza e a força dos povos nativos, como importantes elementos identitários.
Em 1922, ano em que se comemorava o centenário da Independência, ocorreu no Brasil “A Semana de Arte Moderna” – evento que deu início ao Modernismo brasileiro e do qual fizeram parte Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Através de uma postura combativa, crítica e transgressora, os escritores modernistas contestavam a dominação cultural e buscavam resgatar o “eu brasileiro”. Observemos o que diz Oswald de Andrade, em seu “Manifesto Antropofágico”:
Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema, – o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte (ANDRADE, 1976, p.6).
Já em 2022, quando comemoramos o bicentenário da Independência, o que se percebe é a apatia de um povo que parece não se sentir verdadeiramente parte desta nação. As dificuldades econômicas impõem-se ao espírito de exaltação e de orgulho nacional. Assim sendo, é necessário promover um trabalho de reconhecimento e de valorização dos elementos fundadores de nossa cultura, buscando, através de nossa história e de expressões artísticas diversas, reforçar a sensação de pertencimento e encontrar o verdadeiro sentido de “ser brasileiro”, deixando de lado preconceitos e falsos preceitos sobre nossa identidade cultural.
Em sua obra Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire destaca que a vocação de “Ser Mais” é inerente ao ser humano. “Ser Mais” é ter capacidade de se libertar da opressão, através da reflexão e da ação. Segundo a Educação Libertadora freiriana, essa vocação é negada às classes oprimidas, as quais têm seu comportamento proscrito pelos opressores e são impedidas de desenvolverem um olhar reflexivo sobre a realidade: “O que temos que fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação” (FREIRE, 2005, p. 100).
Talvez a solução seja pensar o Brasil como um país em construção e considerar a educação como o seu mais importante alicerce e a sua mais poderosa ferramenta de resistência à opressão. Ao se pensar a educação como base para o progresso, o Bicentenário da Independência torna-se o momento ideal de voltarmos o olhar para o nosso passado, aprendermos com os erros e traumas vivenciados, e buscarmos construir um Brasil melhor para o futuro.
Para saber mais
ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf
FREIRE. Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
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