Ataques à democracia exigem reforço do compromisso da educação

Alexandre Fernandez Vaz

Não sei para quantos, mas para mim a eleição e a posse de Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República chegaram muito mais como alívio do que como esperança. No entanto, como violento exemplo de que nada está garantido, veio o episódio de 8 de janeiro, ponto culminante do sem-sentido cultivado por semanas a fio na frente de unidades militares. Em alguma coisa aquilo tudo tinha que estourar. O caldo antidemocrático que ferveu nos últimos anos – pasta venenosa que, de resto, nunca pôde ser congelada, muito menos jogada no lixo – normalizou ameaças e ações inaceitáveis em um ambiente político que fosse razoável.

Eis um dos grandes legados do governo de Jair Messias Bolsonaro: ter legitimado a irracionalidade, o desvario, um sentimento que não é aquele que Sigmund Freud chamou de oceânico, senão que tem a profundidade de uma poça d’água (ou será a água acumulada em pneus de caminhão adorados como amuletos?). O próprio presidente não deixou de se esmerar em afirmações estapafúrdias, fazendo muitas vezes que nós, de maneira um tanto ingênua, nos mobilizássemos para desmenti-lo com argumentos lógicos e racionais, irônicos. Tolice. Lógica e racionalidade, assim como ironias, são movimentos não raro vistos, de maneira ressentida, como elitistas, inclusive por gente da Universidade. Então para Jair foi fácil encarnar o representante do povo excluído, o perseguido, o pequeno-grande-homem. Não é casual que tanto o ex-mandatário, como seus apoiadores puderam dizer que são apenas narrativas as críticas a eles dirigidas. Sem objetividade compartilhada, tudo vira palpite, crença, subjetivismo. Por que não seria assim com as críticas elaboradas por gente de esquerda? Observe-se, aliás, que as acusações que Messias e sua turma fizeram à TV Globo e aos grandes jornais não diferem muito daquelas que o Partido dos Trabalhadores (PT) cansou de proclamar.

Temos assistido nas últimas semanas às tensões do novo governo. Elas já se manifestaram na formação do colegiado, ainda em dezembro. Para o Ministério da Educação foi nomeado Camilo Santana, ex-governador do Ceará e senador pelo PT. A questão educacional é cara aos petistas, que teriam reivindicado o cargo contrapondo-se à preferência inicial de Lula, que era a ex-governadora cearense e ex-vice do próprio Camilo, Izolda Cela. O PT costuma ter dirigentes educacionais importantes em suas gestões, o que inclui até mesmo Paulo Freire, na prefeitura de Luiza Erundina, em São Paulo, e Esther Grossi, que trabalhou com Olívio Dutra, em Porto Alegre, ambos a partir de 1988. No plano nacional, Cristovam Buarque começou como titular do MEC no primeiro mandato de Lula, em 2002, mas nos dois mandatos o protagonismo coube principalmente a Fernando Haddad. As diferenças são tão eloquentes que não seria preciso compará-los com a sucessão de péssimos ministros do último governo e suas gestões desastrosas, com destaque, provavelmente, para Abraham Weintraub.

Há um outro elemento que precisa ser considerado nessa equação. Sem abrir mão de seu compromisso formativo e com a democratização educacional – não é este o espaço para discutir até que ponto eles são de fato considerados –, o PT poderia ter feito o gesto de renunciar à direção do MEC. Camilo tem méritos, mas seria um movimento saudável contra uma marca do partido, que é a de ter enorme dificuldade em dividir o poder com outras forças políticas ou técnicas. Não faz bem à democracia esse ímpeto controlador da maior agremiação de esquerda do Hemisfério Sul, mas que sem apoio de gente como Marina Silva e Simone Tebet, não teria visto a coligação por ela liderada sair vencedora. Destaque-se que a primeira se reaproximou do PT, mesmo tendo sido desrespeitada quando ainda era filiada a ele (e ainda mais quando foi candidata adversária), enquanto a segunda, malgrado as escaramuças do primeiro turno, alinhou-se a favor da democracia, sem hesitar em relação a ela no pleito decisivo.

Lula venceu a corrida eleitoral, mas isso não basta para a construção da democracia, como estamos vendo a cada dia. O PT tem enorme responsabilidade nesse estado de coisas que enfrenta. A extrema-direita não foi derrotada: metade do país preferia que o pior presidente de nossa história continuasse, mesmo depois de tudo o que aconteceu nos últimos quatro anos. Para muitos foi sempre não problemática, por exemplo, a participação maciça de gente da caserna no governo; há quem avalie que um golpe militar – um golpe na constituição – deveria ter sido realizado em nome da defesa da liberdade e contra os grilhões do “comunismo”. Falta algo ainda para ficar muito clara a situação em que ainda estamos metidos?

Nos anos 1960, Theodor W. Adorno considerava que a presença do nacional-socialismo na democracia era algo extremamente pernicioso. O filósofo apontava a corrosão interna do sistema democrático, assim como a aparente ambiguidade das forças de extrema-direita, como impulsos que as condições objetivas favoreciam. Por isso também dizia que a tarefa primordial da educação era evitar que Auschwitz se repetisse, atuar contra o Zeitgeist. Na mesma época, em um encontro com estudantes em Viena, concluiu uma conferência sobre o radicalismo de direita com o seguinte alerta: “como essas coisas andam, e como prosseguirão, isso é, em última instância, de nossa responsabilidade”.

No Brasil da terceira década do século vinte e um, sabemos o desafio que a educação deve enfrentar. Inspiremo-nos, quem sabe, nas considerações de Adorno. O tempo, infelizmente, não as tornou anacrônicas.

Para saber mais
ADORNO, Theodor, W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2020 (Tradução de Wolfgang Leo Maar; Organização de Gerd Kadelbach). 208 p.

BARROS, Celso Rocha de. PT, uma história. São Paulo: Companhia das Letras: 2022. 488 p.

DIEGUEZ, Consuelo. O ovo da serpente: Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 328 p.


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