Natascha Stefania Carvalho De Ostos¹
O conceito de Antropoceno foi criado pelo químico Paul Crutzen e o limnólogo Eugene Stormer, para sugerir que estaríamos vivendo uma nova época geológica, marcada pelos efeitos planetários do desenvolvimento humano. Tendo como marco inicial o período da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, o Antropoceno se caracterizaria pelo crescimento populacional humano, pela escala gigantesca de exploração dos recursos naturais e pela disseminação gradual, e desigual, de um modelo econômico fundado na expansão de bens de consumo, com profundos efeitos, de grande escala, no meio natural: poluição, desmatamento, esgotamento das fontes de água, mudanças climáticas, extinção de espécies, etc. Em termos geológicos o conceito de Antropoceno não é consensual, mas ele foi rapidamente apropriado por outros setores acadêmicos, tanto das ciências biológicas como das humanas, para então espraiar-se pelos meios de comunicação, e assim adquirir certo nível de popularização. Hoje o termo é amplamente utilizado para referir-se, de modo genérico, às mudanças de grande magnitude provocadas pelo ser humano na Terra.
Mas é preciso nuançar a expressão Antropoceno. Primeiramente, é enganoso pensar que a natureza é estática, que só muda pela ação homem; ela é, na verdade, uma realidade dinâmica, em constante transformação. As alterações ocorridas no mundo natural podem ser causadas ou não pelo ser humano. Mas, se não há dúvida de que nos últimos séculos a humanidade impactou brutalmente o ambiente, de qual humanidade estamos falando? O emprego superficial do termo Antropoceno dá a impressão de que todos os seres humanos possuem a mesma responsabilidade na crise ambiental que vivemos. O fato é que grande parte do consumo de recursos naturais do planeta pode ser atribuída às populações dos ditos países desenvolvidos, cuja população privilegiada detém o poder de acessar terra, água, ar de boa qualidade, ambientes limpos, etc.. Existem assimetrias e desigualdades imensas no uso desses recursos, e o termo “antropo”, que se refere a humano, pode mascarar essa situação, passando a impressão de que todos estão no mesmo barco. A realidade é que, enquanto o engajamento das pessoas abastadas no movimento ambiental se dá, muitas vezes, em prol da “qualidade de vida”, as populações pobres lutam por acesso mínimo a recursos naturais e pelo direito à subsistência.
Países ricos e suas empresas multinacionais expandem as atividades econômicas para além das suas fronteiras, ocupando e explorando o território ambiental de outras nações, em parceria com as elites locais. A riqueza é extraída, mas o passivo ambiental fica com as populações que vivem nas proximidades dos empreendimentos: contaminação e falta de água, depósitos tóxicos, lixões, erosão do solo, poluição atmosférica, migração (em razão de desastres ambientais e expropriação de terras). Mesmo dentro dos países pobres a distribuição desse passivo ambiental se dá segundo marcadores de desigualdade: raciais, de gênero e classe, regionais. Ele é suportado por gerações, pois os danos se perpetuam no longo prazo e não podem ser sanados por compensações financeiras pontuais.
Assim, a parcela economicamente menos favorecida da humanidade, que suporta o ônus das atividades de exploração ambiental, é excluída dos seus benefícios. Nesse sentido, o conceito de Antropoceno – que é rico, pois chama a atenção para a ação destruidora do ser humano na Terra –, precisa ser usado criticamente, de forma a não mascarar diferenças brutais na responsabilização econômica e ético/política pela degradação ambiental do planeta. Ao nuançar o termo Antropoceno podemos introduzir na discussão não apenas o tema da justiça ambiental, como também demonstrar que existem comunidades humanas, como as indígenas, que construíram modos de vida em maior equilíbrio com a natureza. Não se trata de transpor essas formas de viver para o restante do mundo, mas compreender que a situação atual não foi causada por toda a humanidade, e sim por setores específicos, que a partir de uma dada concepção de mundo realizaram escolhas históricas pelas quais todo o planeta, e os seres que o habitam, estão sofrendo.
Finalmente, é importante considerar que, por mais que o conceito de Antropoceno nos leve a focar no papel do ser humano na Terra, ele não deve favorecer a ideia de uma humanidade redentora e autocentrada, que “salvará” o planeta por meio do uso triunfante da técnica. Pelo contrário, trata-se de descentrar o humano, reconhecer que somos parte da natureza e que precisamos dos outros seres vivos para sobreviver.
¹Historiadora. Pós-doutoranda do Instituto René Rachou – Fiocruz Minas .
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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.
Para saber mais:
CRUTZEN, Paul J.; STOERMER, Eugene F. The ‘Anthropocene’, Global Change Newsletter, n. 41, 2000, p.17-18.