A universidade e o diálogo com a comunidade: pensar dissidências sexuais e de gênero no extremo sul da Bahia

Rebeca Valadão Bussinger*

Neste mês de outubro o Núcleo Universitário de Estudos, Pesquisas e Intervenções da Universidade Federal do Sul da Bahia (NUDES/UFSB) inicia o primeiro curso voltado à comunidade externa com o tema “Gêneros, Sexualidades e Direitos Humanos”. Com foco na formação complementar de professoras e professores da rede pública de ensino da cidade de Teixeira de Freitas e região, a proposta tem repercutido positivamente, justificada inclusive com o esgotamento das vagas oferecidas na primeira semana de divulgação. Com a notícia circulando, uma professora da educação básica reage, em rede social, dizendo: – O curso é uma iniciativa necessária!

Em que pese o tom de “vanguarda” que o comentário provoca, a saber, que iniciativas como a apresentada à comunidade não são comuns no contexto do extremo sul baiano, o comentário nos leva a refletir acerca de dois pontos sensíveis quando pensamos a articulação entre gêneros e sexualidades, a academia e seu entorno. Um ponto, já bastante conhecido, diz respeito a relação que se estabelece com os grupos e coletividades que se constituem fora do cenário acadêmico. Sobre esse aspecto, ainda que com fragilidades e desafios, as universidades se amparam fundamentalmente nas políticas internas de extensão para ocupar e constituir espaços que muitas vezes extrapolam sua arquitetura curricular tradicional. O outro ponto sensível está na compreensão de que as dissidências sexuais e de gênero implicam aspectos estruturais à constituição humana, devendo, portanto, assumir caráter transversal nas práticas e formações pedagógicas em oposição à ideia de que estudos em sexualidades devam se concentrar num “gueto” que atinge somente pesquisadores, professores e alunes interessades.

A universidade Federal do Sul da Bahia completou em 2020 sete anos de existência. Desde sua fundação, orientada pela defesa da interiorização do ensino superior público, organiza-se pelos regimes de ciclos e colégios universitários a fim de popularizar o ingresso na universidade. Essa proposta inclui a oferta de formação em licenciaturas interdisciplinares na intenção de suprir uma demanda crescente da região: a formação de professores para a educação básica. Se o objetivo aqui fosse discutir os planos pedagógicos dos cursos de licenciatura veríamos que a estrutura curricular assume, minimamente, cerca de três componentes em que o debate sobre gêneros e sexualidades é obrigatório. Um exemplo é o componente curricular denominado “Gênero, sexualidade e educação”. Assim, é nessa intersecção entre currículos, formação acadêmica e formação complementar para professores ativos na rede pública de ensino que questionamos em que dimensões se encontram o debate sobre gêneros e sexualidades, a comunidade e a universidade?

A verdade é que temos vivido um estrangulamento destas possibilidades dialógicas dentro e fora da academia. Tomo como exemplo a cidade em que o NUDES/UFSB tem se situado. Teixeira de Freitas é uma cidade de médio porte do extremo sul da Bahia conhecida pelo seu significativo potencial na agricultura, na pecuária e no comércio, o que torna a cidade foco de migrantes na busca de melhores condições econômicas. Sua população média de 162 mil habitantes é composta por uma multiplicidade de sujeitos, nativos e oriundos de outras regiões. Quando consideramos as políticas de educação defendidas no município no ano de 2019, temos a ampliação do ensino militar como referência educacional e a tentativa de implementação do projeto “Escola sem Partido” que ataca, diretamente, a pauta de gêneros e sexualidades na educação. A articulação em torno da aprovação pela câmara de vereadores do projeto “Escola sem Partido” foi duramente combatida por boa parte dos profissionais de educação da região.

Foi justamente nesse cenário de conflito que também no ano de 2019 desenvolvi projeto de extensão com alunas do curso de Psicologia numa escola de ensino médio cujo objetivo foi trabalhar gênero, diversidade e relações étnico-raciais através da linguagem do cinema e rodas de conversa. Acompanhando as disputas que se davam no contexto político local, esperávamos que a qualquer momento seríamos interpeladas pela inviabilidade de continuação do projeto, o que não aconteceu. Com essa experiência refletimos que, ainda que pensar as dissidências sexuais e de gênero sempre tenha sido um campo tensionado na educação, há territórios sensíveis e abertos que não temem os antagonismos já traçados pela conflituosa história entre gênero, sexualidade e educação.

O desdobramento da experiência anterior, que contribuiu para a construção da proposta do curso atual ofertado pelo NUDES nos faz pensar no caminho que a universidade deve seguir ao assumir as dissidências sexuais e de gênero, em parte contempladas nos eixos dos projetos pedagógicos das licenciaturas. Extrapola o apoio institucional à iniciativas reconhecidas pela comunidade como necessárias atuando no fortalecimento e construção de um cotidiano de debates formativos que articule as experiências de professores em formação e em atuação, além de outros agentes sociais. Assim, faremos frente a distopia provocada por aqueles que pouco se propõem a compreender as dissidências de sexualidades e gêneros como elementos nos humanizam e nos permitem viver.

* Coordenadora do NUDES/UFSB e professora da Universidade Federal do Sul da Bahia.

 

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