Vidas negras importam ou não importam?

Daniel Machado da Conceição

Nos últimos meses algo tem incomodado muito uma parcela da população mundial, principalmente, assim como parte da população brasileira. Durante a pandemia se acirraram as desigualdades, e tem sido um momento para olhar mais para si permitindo aflorar diversos sentimentos. Algumas pessoas mobilizam sentimentos otimistas e coletivos, pois visualizam uma transformação no mundo capaz de o deixar mais harmonioso, igualitário e empático. Outros, mergulham em um looping vertiginoso de temor e medo do futuro e se agarram ao passado que parece mais confortante, assim procuram evitar encarar a si mesmos e dar os passos necessários em direção oposta à segurança da sua bolha.

As pessoas pertencentes a esse segundo grupo tendem a refletir sempre com base no mérito pessoal, na busca e manutenção de privilégios, por fim, se relacionam com o mundo a partir do seu individualismo, dizendo: se eu posso, todos os outros podem! Justificam que o sol nasce para todos, mas esquecem dos contextos em que esse sol se faz presente. Mesmo o sol como metáfora de uma igualdade ou democracia da natureza que rege todas as coisas, ainda assim a sua incidência é afetada por questões geográficas e geológicas. O sol nascer para todos parece ser uma premissa verdadeira, mas precisamos estar cientes que ele não se faz igual para todos.

Confesso que dói ver as pessoas viverem acreditando que seu individualismo serve de régua moral, social e até cultural para a sociedade. Esquecem que as condições e os dispositivos sociais podem impedir o avanço de muitos que são forçados a internalizar o fracasso, sem saber, assumindo que não nasceram para fazer determinada coisa e assim aceitam um destino determinado.

A frase vidas negras importam, exemplifica um debate que foi reduzido à individualidade, pois muitas pessoas usam de teimosia para justificar que a frase é indevida, acreditando que todas vidas importam. Em tempos de individualismo exacerbado, quero dar os parabéns pelo esforço em reconhecer essa afirmação presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que no seu Artigo Primeiro, diz: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

A ideia de que o sol nasce para todos, uma premissa verdadeira, facilmente desconsidera as barreiras ou muros que a sociedade impõe sobre grupos minoritários, oferecendo inúmeros infortúnios aos que sofrem pelo fato de serem os menos adaptados ou desviantes. Parece improdutivo usar este espaço para escrever uma defesa esclarecedora sobre algo evidente, mas, sim, vidas negras importam porque neste momento são as que mais morrem vitimadas pela violência produzida por um Estado que autoriza nas suas instituições a existência de uma necropolítica.

Se ainda não se está convencido, podemos buscar exemplos simples para justificar a argumentação. Quantas pessoas morrem por balas “perdidas”? Qual a cor delas? Quantas são abordadas e seguidas por funcionários ou vigilantes em estabelecimentos comerciais? Qual a cor delas? Quem mais sofre de violência obstétrica? Quem mais morre em razão da COVID-19 no Brasil? Quem não tem acesso pleno a saneamento básico? Quem recebe menores salários mesmo com qualificação e experiência profissional igual ou superior aos colegas? Quem possui menor taxa de escolarização no país? Não vale dizer que tudo isso se dá por razões intelectuais ou cognitivas, simplesmente porque não é verdade. Resumindo, como cantado pela Elza Soares, A carne mais barata do mercado é a carne negra; Que vai de graça pro presídio; E para debaixo do plástico; Que vai de graça pro subemprego; E pros hospitais psiquiátricos.

O meu filho, um menino de seis anos, inconformado por não conseguir entender o motivo das pessoas falarem mal ou proferirem xingamentos contra negros, recentemente me fez uma pergunta. Ele observou no noticiário esportivo o debate sobre seus ídolos no futebol e em outras tantas modalidades que sofrem com o racismo. O que lhe perturba é observar as pessoas se desrespeitando por causa da cor da pele, ele que vive em uma família multirracial, pai negro, mãe branca e três filhos miscigenados (duas filhas e um filho). Cresce num grupo familiar que expressa amor pelas pessoas e não pela cor da pele, sem qualquer ênfase no colorismo. Nitidamente, o sentimento da criança é de desaprovação ao racismo: como é possível isso existir?É uma grande oportunidade pensar a partir da reflexão de uma criança, infelizmente, já em tenra idade perturbada com o que vê, escuta e ainda vai viver. Por um instante, causa muita tristeza saber que já na infância esta questão precisa ser ensinada para aprender sobre a crueldade presente na sociedade.

Se você não se emociona com o seu filho fazendo esta pergunta, realmente, tenho que concordar que vai continuar pensando que todas as vidas importam. Como pai e homem negro já tive conversas semelhantes a esta como as minhas duas filhas que também questionaram de maneira semelhante, não algo que observaram, mas sim aquilo que vivenciaram e sentiram no momento exato em que um olhar, uma fala ou um gesto se materializava discriminatório, não importando o local, se na escola, no ônibus, na igreja, no shopping, no restaurante, na praça etc. Quantas vezes o casal conversou procurando protegê-las e motivá-las, pois não eram culpadas pela ação do outro sobre elas.

Se um pai ou mãe nunca sentou com o seu filho para falar sobre o racismo, explicando sobre o seu significado e em seguida precisou incentivá-lo a erguer a cabeça, dizendo que tal postura é mentirosa, exaltando a beleza, inteligência e todas as outras magníficas características dele, então ele não pode dizer que sabe o que é sofrer racismo, e por isso continuará exaltando que todas as vidas importam. Como pais, ficamos sempre ressentidos com a enormidade de situações discriminatórias, mas hoje nos apavora que uma criança de seis anos, um pouco maior ou menor, com olhos lacrimejando questione se não somos todos iguais.

SIM, somos todos iguais, como princípio universal, mas quando colocados cada um no lugar em que estamos agora, exercendo papéis sociais diversos, infelizmente, nesse momento o encanto termina e a realidade se mostra avassaladora. Somos diferentes socialmente com acessos limitados à saúde, educação, trabalho, segurança, alimentação, moradia, cultura etc. O sol nasce para todos, mas seu poder de influência depende do contexto em que o sujeito está inserido. O sol pode ser abrasivo, árido, seco, úmido, gelado e mesmo não aparecer por longas semanas, o que depende da sua localização no globo terrestre.

Quando as pessoas afirmam que todas vidas importam, em contrapartida, estão dizendo que não se importam com quem morre. A expressão vidas negras importam não quer de maneira simplista exaltar que vidas negras são mais importantes que outras. Isso se chama racismo, uma ideologia que acredita existir uma raça superior a outra(s). Essa ideologia já molda a sociedade ocidental, mesmo estando mascarada na afirmação de que todas vidas importam. Quando proferida, a expressão todos importam, evidencia o fato de não nos importarmos com quem morre, pois, a morte tem classe social e tem cor. Ao entender o significado de vidas negras importam, perceberemos que se está falando da morte como a perda de inúmeras possibilidades, de múltiplos sonhos e de muitas vidas magníficas que parecem descartáveis. Vidas negras importam porque nos incomoda ver que a morte delas não importa.


Imagem de destaque: Ato Antirracista e Antifascista da sociedade civil contra o governo do presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista. 12 de julho de 2020. Foto: Felipe Campos Melo

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