A Esfera Pública Habermas, Arendt e Sennett

 Antonio Carlos Will Ludwig

Esfera pública é uma das mais relevantes categorias pertencentes à teoria social. Oposta ao conceito de esfera privada, de modo não excludente, ela se mostra destacada porque abriga o espaço cívico que torna viável   o exercício da cidadania ativa. Assim sendo revela-se imprescindível fazer uma análise dela tendo por referência os principais autores que a estudaram.   

Consideramos que o mais proeminente analista do tema é Jürgen Habermas com a obra Mudança Estrutural na Esfera Pública. Neste livro ele afirma  que a esfera pública tem um sentido extenso, qual seja, o de um conjunto de pessoas particulares reunidas em um público. Porém ressalva que este conceito precisa ser redimensionado em função do desenrolar da história.

Segundo tal filósofo a concepção mais distante de esfera pública porém aceitável  nos dias de hoje, encontra-se na Grécia antiga onde vigorava o modo de produção escravagista. Para os homens adultos, autóctones e não escravos ela era vista como o reino da liberdade, o local onde tudo se mostrava visível a todos, o espaço no qual os cidadãos transitavam como iguais, a área que possibilitava  a conversação entre os pares, a região que oportunizava o reconhecimento das virtudes pessoais. 

Na idade média europeia condicionada pelo modo de produção feudal não existia uma antítese entre esfera  pública e esfera privada. A casa do senhor era o centro de todas as relações de dominação. Não havia pessoas privadas que  apareciam na esfera pública. Existiam apenas autoridades superiores e inferiores e privilégios diferenciados. Nessa época a categoria esfera pública começou a emergir como  resultado do desenvolvimento da sociedade burguesa na forma de um mecanismo de auto mediação dela com um poder estatal correspondente às suas necessidades. O antagonismo de interesses entre o capital comercial e financeiro versus capital manufatureiro e industrial foi decisivo para o seu aparecimento.

O aspecto político da esfera pública tem sua gênese atrelada a outros fatores. De acordo com Habermas ele surgiu na França durante a segunda metade do século 18 em consequência da instauração dos clubes partidários compostos por frações do parlamento. A Constituição deste período adotou a declaração dos direitos do homem e do cidadão a qual garantia a livre circulação de ideias e opiniões e reunião.Na Alemanha ela apareceu nos primordios do século 19 por meio das pessoas que costumavam ler revistas, conversar sobre elas e trocar pontos de vista, resultando na formação de um público e de uma opinião pública.  

Destaca Habermas que este aspecto  é visto de forma diferente conforme a opção ideológica. De acordo com o marxismo, o poder político é o principal recurso organizado por uma classe para  oprimir outra. Entretanto Marx visualiza uma mudança neste poder em decorrência do sufrágio universal. À medida que as camadas não burguesas penetram na esfera pública burguesa, participam da imprensa, do parlamento e dos partidos a hegemonia burguesa tende a se enfraquecer.

Por sua vez os representantes do liberalismo que vangloriavam a esfera pública, ao perceberem que ela poderia trazer depauperamentos devido à crescente penetração popular  passaram a condená-la. Utilizaram os argumentos de que  as massas são desprovidas da necessária formação cultural, as questões políticas não devem ser decididas pela vontade de uma multidão inculta e a opinião pública não pode ser dominada pelas paixões do povo, ao contrário ela precisa ser purificada pelos competentes pontos de vista.

Outra importante estudiosa do assunto é Hannah Arendt. Em seu livro intitulado  A Condição Humana ela diz que público é tudo que pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Significa também o próprio mundo, produto das mãos humanas, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. A esfera pública, isto é, o mundo comum, reúne a companhia de uns com os outros e tem uma longa duração. O mundo comum vai além da duração da nossa vida, preexistia à nossa chegada e sobreviverá a nós.

Ao recorrer à história Hannah aponta que nos primórdios da era moderna ocorreu temporariamente a extinção da diferença entre as esferas pública e privada que submergiram na esfera do social. A pública tornou-se função da privada e a privada tornou-se a única preocupação que sobreviveu. O único meio de nos escondermos do público é a propriedade privada. A distinção entre o público e o privado coincide com a oposição entre a necessidade e a liberdade. As duas esferas indicam que há coisas que devem ser ocultadas e há coisas que precisam ser expostas pois só assim adquirem sentido existencial.

O terceiro pesquisador de realce é Richard Sennett com sua obra  O Declínio do Homem Público. Tendo por base  uma visão intimista, ele diz que o domínio público encontra-se esvaziado, abandonado e desprovido de sentido. Existe uma soledade no espaço urbano pois os indivíduos são inibidos  a sentir qualquer forma de relacionamento com ele pois é visto apenas  como um meio para  chegar à finalidade da própria locomoção. Há também um isolamento da nossa visibilidade para com os outros. Nos lugares onde as pessoas se encontram expostas a outras é provável que tenham uma atitude reservada. Os seres humanos precisam manter uma certa distância da observação íntima por parte do outro para serem sociáveis.

Também recorrendo à história informa que no século 17 público significava aberto à observação de qualquer  pessoa e privado uma região protegida da vida definida pela família e pelos amigos. No século 18 público era uma região da vida social separada da família e dos amigos íntimos.  Passou então a significar uma vida que ocorre fora desses dois círculos. Em fins do século 18 as noções de público e privado mudaram radicalmente em consequência do secularismo e ascensão do capitalismo. 0 secularismo afetou a maneira como as pessoas interpretavam o estranho e o desconhecido. O capitalismo enfatizou as privatizações  e a ostentação da vida material em público. A família constituía uma espécie de escudo contra o excesso da exposição em público, uma região particular, um refúgio, um mundo exclusivo com valor moral mais elevado que o domínio público.

Pelo exposto é possível perceber que estes intelectuais adotam concepções singulares a respeito da esfera pública. No entanto há uma aproximação entre eles em relação à dominância da esfera privada, à primazia concedida a ela pelos sujeitos considerados como cidadãos passivos… Esta constatação, válida para os dias de hoje, é deveras preocupante, haja vista as ameaças à democracia em várias regiões do mundo, particularmente em nosso país. Torna-se fundamental no momento superar tal situação pois caso contrário o regime democrático tenderá a sofrer desgastes sucessivos capazes de desfigurar sua essência de ser a expressão da soberania popular. 


Imagem de destaque: Flickr

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