“Tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Caio César Souza Coelho1

“Tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

Fernando Pessoa

Eu lido com sonhos. Eu lido com os sonhos sonhados e os sonhos em processo. Eu lido também com as frustrações que os sonhos causam. E mais… eu tenho meus próprios sonhos. E os sonhos que sonharam para mim!

Um de meus alunos foi embora. O motivo? Não foi bem tratado por uma professora. Essa educadora não soube lidar com o fato dele ser transexual. Mas, veja bem, ela sequer sabe que ofendeu o garoto. Se ela ler esse texto, provavelmente pensará: quem será que foi essa professora?

As escolas têm muitos professores. A maior parte deles quer uma educação melhor. E querem ser melhores professores. Eu falo isso porque sou professor. Da rede pública e do ensino básico. Eu vejo, convivo e observo que os corações são bons. Mas nós erramos também. Infelizmente essa professora teve um comentário infeliz. O aluno partiu e eu, bom, eu sofri. 

A minha vida inteira carreguei a bandeira de não soltar a mão de ninguém. Esse aluno, quando entrei em sua sala, foi o primeiro a dizer: – “O senhor tem a ‘energia’.” Energia era a forma dele dizer que eu era da comunidade LGBTQIAP+. Ou seja, ele sabia que eu sou gay. 

Não que eu queira polemizar se existe ou não um “gaydar”, longe disso. Só quero deixar claro que, naquele dia, eu percebi que tinha uma missão. Existem milhares de jovens que carecem de representatividade. E, eu acho que posso tentar ser parte dessa representatividade. 

Ele saiu da escola, mas nosso contato não acabou. Depois disso eu comecei meu mestrado e quis um tema que correspondesse à missão que sinto ter. Queria falar para os meus. Àqueles que estão em lutas, constantes, para visibilidade, respeito e tratamento digno.  

Primeiro consegui dois orientadores, a quem aproveito para agradecer o cuidado e a seriedade de sempre. Depois, recebi duas bolsistas pelo projeto da minha universidade. Sim, duas alunas iriam estudar e trabalhar comigo (inclusive deixo um abraço para as duas). Daí, quando nos reunimos elas escolheram o tema. E parece que alguma energia queria muito fortalecer a minha missão. Elas escolheram fazer um projeto sobre a população trans e travesti de minha cidade. 

Eu achava que era desconstruído. Achava que eu estava bem de conhecimento. Mas, essas duas mostraram que eu “tô ficando véio”. O conhecimento não estaciona, ele corre, corre rápido. E eu estava ficando para trás. 

Começamos nossas pesquisas, nossas reuniões e eu comecei a ver uma escola que eu sempre quis trabalhar. Só não era melhor porque os encontros eram online (devido à pandemia). Nós buscávamos novos textos, roteiros, e decidimos que precisávamos compartilhar o conhecimento adquirido. 

Definimos que criaríamos animações, um documentário e se desse um livro. Me parece que todos irão sair, isso é uma alegria sem tamanho. Não pelos produtos em si, mas as conquistas e conhecimentos que vieram antes, durante e após a criação desses produtos. 

Ninguém nunca me perguntou, em sala de aula – e talvez por isso eu nunca tenha refletido muito sobre – que durante o processo da meiose (meiose em nós, seres humanos, é a multiplicação das células gaméticas), os cromossomos não iam, todos, sem nenhuma mutação. Sempre há algo que pode ser diferente. O que não quer dizer que deu errado. Pelo contrário, o diferente pode ser surpreendente.

As diferentes mutações podem gerar corpos diferentes e a pergunta que eu e minhas alunas fizemos foi: qual corpo não é diferente? Pois é, todos os corpos são diferentes, e precisam ser vistos com sua individualidade. 

Alguns rótulos auxiliam na visibilidade de características comuns aos seres, mas nós vamos além desses rótulos. Há homens que nasceram com úteros e esses homens podem ter feito ou não redesignações sexuais. Alguns desses homens podem ser homens trans. Outros intersexuais. Há muitas mulheres que colocam silicone. Algumas dessas mulheres são mulheres trans. Há pessoas que usam perucas e apliques. Nem todas são mulheres, nem todas são trans e nem todas as pessoas têm uma definição simples sobre quem são. Simplesmente querem e usam seus apliques e perucas. 

Nossos produtos e reflexões foram sobre isso. Sobre diversidade, sobre exclusão e sobre uma falsa verdade que tentamos colocar na mente das pessoas que só existem dois sexos. Dois gêneros. Dois. Binário. Chave e fechadura. Mamãe e papai. 

As reproduções são diversas, os gêneros são diversos, as famílias são diversas e a escola é diversa. Não posso sonhar apenas o meu sonho. Ou o sonho que me ensinaram. E não posso ensinar que as pessoas sonhem apenas para si. 

Nosso projeto continua, temos entrevistados os corpos trans e travestis, lidado com feiras, mostras e levado nossos trabalhos. Apresentamos nosso projeto para o público da escola de mais de 400 pessoas pelo youtube e continuamos a criar nossas animações.  

Eu sou professor, eu sou os sonhos dos meus alunos, eu sou os sonhos dos pais deles. Eu tenho em mim todos os sonhos do mundo. E não posso deixar nenhum deles morrer. Esse é meu sonho.

1 – 26 anos. Professor de Educação Básica (PEB) efetivo de Ciências e Biologia pelo Estado de Minas Gerais (SEE). Licenciado em Ciências Biológicas, pós-graduação em Análises Clínicas e Mestrando em Ensino de Biologia em Rede Nacional (PROFBIO/UFMG). Atualmente atua com pesquisas na área de ensino de biologia, sexualidade, gênero e biologia Queer. 


Imagem de destaque: Pxfuel

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