Jardim de chuva

Edilson da Silva Cruz

Esticador de horizontes (…)na poesia uma palavra diz muito mais do que diz, é a palavra que se estica então, isso sim, onde a palavra sozinha não vai, com a poesia vai, voa, que nem os passarinhos (…)

(Stênio Garcia, A palavra que resta)

O parquinho vai ser reformado, imagina a alegria das crianças.  Vai ficar maior, ter mais brinquedos, casinha na árvore, lago, ponte, pirâmide de bambu, cabana, muita coisa nova. Quando vai ser isso, diretor? Logo agora, durante as férias: quando vocês voltarem, vai ter parque novo.

Assim começou a conversa com os pequenos do primeiro ano. O projeto de reforma do parquinho, fruto de um trabalho de educação ambiental na escola, vai trazer mais natureza, menos concreto, mais espaço, mais brincadeira. Como explicar para alunos de 6 e 7 anos que aquele desenho enorme que eles veem impresso em tamanho A3 é uma planta arquitetônica humanizada em 2D, será que vão entender?

“Tio, isso é um mapa?” Boa, eles já entenderam. Era como se alguém tivesse voado em cima da escola e tirado uma foto do pátio externo: olhem a quadra, o quiosque, o parquinho. Quando vocês voltarem das férias, vai estar tudo diferente e, aqui no canto, vai ter um jardim de chuva. Vocês sabem o que é um jardim de chuva? “Um jardim onde chove?” Mas em todo jardim chove e nem por isso a gente chama de jardim de chuva, o que esse tem de diferente?

“Eu sei, tio”. Fala, Bryan: “É porque quando chove a terra bebe a água da chuva”.

O diretor olha espantado para o garoto e, em seguida, para a professora. Um misto de surpresa e admiração. E não é que ele está certo? Um jardim de chuva é uma “infraestrutura verde projetada para reter temporariamente e absorver o escoamento da água da chuva que flui de telhados, pátios, gramados, calçadas e ruas” (1); lugar onde “a água permeia o solo através de uma rede de drenagem subterrânea.” (2) Eis que, de fato, no jardim de chuva, a terra bebe a água da chuva, metaforicamente.

O espanto diante daquela resposta criativa do pequeno Bryan é menos pela sua capacidade de descrever uma estrutura complexa de forma simples, e mais pelo esticamento de horizontes que ela promove.

A ação descrita pelo verbo beber supõe um sujeito, que ingere determinado líquido, um corpo com sistema digestório que o absorve com o objetivo de manter-se hidratado, com energia vital para sobreviver. Na compreensão do Bryan, porém, a ação de beber prescinde de um corpo animal/humano. Basta uma estrutura viva, como a terra, capaz de se hidratar com a água para manter-se viva.

Mas Bryan foi além. Em sua metáfora, ele provocou uma experiência estética nova. A palavra “estética” vem do grego, aesthesis, que expressa a ideia de despertar, romper com a anestesia do mundo, deixar-se comover por ele. A surpresa causada pelo uso incomum do verbo beber advém desse rompimento com o olhar apático sobre a realidade e a proposição de outros horizontes de significados possíveis, outras formas de relação entre palavra e mundo.

No centro da experiência estética está a linguagem poética, esticadora de horizontes. Como expresso na bela epígrafe que abre esse texto (3): ao fazer-se arte, a palavra se estica, se alarga, se distende, repuxa os horizontes possíveis de significados que a definem cotidianamente. Logo, “diz muito mais do que diz” e oferece ao leitor novas formas de apreciação da beleza do mundo: “voa, que nem os passarinhos…”.

Assim, um verbo, beber, possivelmente intransitivo, mas nunca intransigente, de repente, se estica, encontra outros caminhos para sua transitividade, sua capacidade de juntar-se, não só a outras palavras, mas a outros contextos, e produzir novos significados e novas sensações.

Quando diz que a terra bebe a água da chuva, Bryan atribui à terra um corpo, semelhante ao dos répteis, insetos, mamíferos, dentre eles, o ser humano. Com isso, humaniza o ecossistema vital que permeia o espaço do jardim de chuva que será construído no parquinho. Não se trata mais apenas de uma estratégia de escoamento da água em uma infraestrutura verde, mas de um espaço vivo, humanizado, viabilizador da manutenção e preservação da natureza.

Bryan não descreveu apenas o jardim, mas esticou os horizontes da reforma do parquinho, convidando a nós, outros humanos, a despertar da apatia, resistir à anestesia (incapacidade de sentir), ao cinza opaco do concreto, ao medo da natureza. O que ele insinua é um novo encantamento, a descoberta de novos significados, em meio ao sistema de relações que nos interligam à vida da nossa Casa Comum, a Terra.

Resistir, redescobrir, reencantar-se são ações necessárias para construir escolas sustentáveis e resilientes, capazes de adaptarem-se, não só com estruturas abstratas que absorvem, escoam, drenam, mas como espaços vivos, que bebem: se alimentam da natureza e da palavra, aprendem com seu sistema socioecológico diversificado, escutam os pequenos Bryans com suas palavras esticadoras de horizontes

Para saber mais
(1) Jardim de chuva: definição, vantagens e como fazer. Disponível em: https://x.gd/wlTCJ. Acesso em 20/07/2022;

(2) Jardins de chuva melhoram o escoamento das águas e trazem beleza para a capital paulista. Disponível em: https://x.gd/Mt324. Acesso 20/07/2022.

(3) Stenio Gardel, A palavra que resta, Companhia das Letras, 2021.

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