Por uma história ambiental das agroflorestas
Joachin Azevedo Neto
A pauta principal dos debates públicos do século XXI deveria ser a questão ambiental. Afinal, não faz muito sentido reivindicar um mundo mais tolerante com a diversidade e pluralidade da condição humana em um planeta assolado por pandemias mortais; catástrofes tais quais grandes enchentes e incêndios florestais; massacre indiscriminado e sistemático de animais indefesos; queimadas e desmatamentos criminosos; grilagem de reservas ambientais e no qual somos obrigados a nos alimentar com alimentos contaminados por agrotóxicos biocidas. A relação destrutiva que a espécie humana está mantendo com a natureza para sustentar um tipo de economia agrícola agressiva e predatória é a principal responsável pela normalização dos altos índices de diabetes, doenças degenerativas, diversos tipos de câncer e até de uma contraditória epidemia de obesidade em um contexto do aumento das taxas de desnutrição nas ditas sociedades industriais desenvolvidas e subdesenvolvidas.
Em outros termos, a degradação da saúde humana está estreitamente interligada com a destruição ambiental. Nesse sentido, uma das vozes mais lúcidas e atuais em prol de uma ressignificação das relações entre ser humano e ecossistemas é o agroflorestor suíço, naturalizado brasileiro, Ernst Götsch. Especialista em Ciência Genética, esse pesquisador vem dedicando sua vida ao aperfeiçoamento de uma técnica agrícola denominada de agricultura sintrópica. A principal característica dessa concepção de agronomia é evitar os imperativos da denominada “agricultura de precisão” – ou monoculturas – que trata as plantas como indivíduos, em favor de sistemas agroflorestais nos quais diferentes espécies vegetais passam a contribuir para a regeneração do solo, restabelecimento de nascentes de água e geração abundante de alimentos orgânicos. Na fazenda Olhos d’água, onde vive desde a década de 1980, na zona cacaueira do Sul da Bahia, Ernst transformou uma paisagem de 480 hectares transformada em pasto, depois de ter sido devastada por muitos anos pela atividade madeireira, em uma fértil fazenda de produção de cacau orgânico a partir de princípios agrícolas que buscam imitar os ciclos vegetativos, bem como as estratificações e cooperações arbóreas encontradas naturalmente nas florestas.
Para Ernst, o uso indiscriminado, pelo agronegócio tradicional, de pesticidas, as monoculturas em larga escala estabelecidas após as queimadas de matas nativas, a pecuária vinculada a formação de pastagens e a irrigação gerou uma triste fábrica de desertos que está comprometendo a própria estadia humana no planeta. Nesse sentido, o mesmo propõe uma agricultura que respeite o anseio da Natureza de ser floresta e acredita que água se planta. No excelente livro Vida em sintropia: a agricultura sintrópica de Ernst Götsch explicada (2022), os autores Dayana Andrade e Felipe Pasini explicam que a supressão das florestas em paralelo a processos cada vez mais agressivos de aração da terra resultaram em mais erosão, assoreamento, degradação ambiental, maiores períodos de secas, enchentes cada vez mais imprevisíveis e no agravamento das tensões sociais típicas da sociedade de consumo. A solução para esse panorama vicioso de esgotamento dos recursos naturais, idealizada por Ernst, é engajar os seres humanos modernos em processos que favoreçam tanto a vida, quanto a coexistência de todas as espécies que participam da composição dos ecossistemas. Por exemplo, tal qual as abelhas, podemos contribuir para paisagens com mais hortaliças, mais madeiras, mais flores e mais frutos, beneficiando não apenas o Homo Sapiens e sim toda a cadeia biológica que nos cerca. Para tanto, é preciso uma mudança filosófica de perspectiva: ao invés de se achar “a inteligência” que rege a Terra, o ser humano precisa se conscientizar de que é apenas mais “uma inteligência” que habita o planeta.
Sendo assim, é possível executar uma agricultura que auxilie na circulação de água doce no solo, transforme carbono em nutrientes para a micro vida do solo, dispense o uso de fertilizantes e biocidas químicos, combata os efeitos das mudanças climáticas e cumpra com outras importantes funções ecológicas. As consequências benéficas dessa mudança de paradigma para a humanidade seriam inúmeras, mas é preciso que mais esforços sejam feitos contra a mentalidade competitiva, produtivista e individualista que domina o cenário do atual mercado de produção de alimentos. Ao invés de pensarmos em agronegócio, alicerçado em uma guerra química e crimes contra a vida, urge difundirmos a noção de agroecossistemas que disponibilizam alimentos saudáveis, oportunidades e abundância para todos: fungos, insetos, animais, produtores e consumidores. As práticas e artes agroflorestais, pensadas inicialmente por Ernst Götsch e difundidas por seus alunos em diversos biomas, são uma esperança em nome de uma reintegração positiva entre humanidade e natureza.
Para saber mais
https://agendagotsch.com/