A segurança dos homens de bem

Alexandre Fernandez Vaz

Não é incomum que crianças e jovens identificadas como fora do seu devido lugar sejam barrados em shoppings centers. O pessoal de segurança às vezes se complica com aqueles que estão onde não deveriam estar: a roupa, os cabelos e, principalmente, a cor da pele, são itens que podem levantar suspeitas. Sem tirar a responsabilidade dos que vão defendendo o emprego trajando terno e gravata e portando um aparelho de comunicação (cada um é responsável pelo que faz), as ordens vêm de cima e provavelmente são claras, mesmo quando não expressas por palavras, tampouco quando a sintaxe não é das melhores: o racismo que nos estrutura como sociedade não deixa ninguém desconhecer quem são os intrusos na câmara isobárica de consumo. O cientista social Daniel Machado da Conceição¹, por um lado, e o cineasta Larry Clark², por outro, souberam, como poucos, interpretar e dar forma expressiva a esse deslocamento incômodo dos jovens da periferia, não só no Brasil.

Os shoppings são, em boa medida, fruto da cultura da violência e da segregação que nos orienta. Instâncias protegidas do frio e do calor, da escuridão, e de tudo o que pode perturbar a euforia das mercadorias feitas espetáculo, descendem diretamente das galerias que Walter Benjamin identificou como marcas da aurora do capitalismo. Como aquelas, são construídos, entre outros materiais, de vidro (a transparência garante a exposição dos produtos sem que se possa saqueá-los), espelhos (a imagem que deve prevalecer é a de si mesmo) e, eis alguma novidade, assepsia (toda sujeira deve ser meticulosamente extirpada). As galerias são espaços de passagem, enquanto nos shoppings há que permanecer. Nestes, é fundamental que os corpos indesejáveis estejam do lado de fora, afinal, já basta ter que desviar de um mendigo a céu aberto, que talvez esteja dormindo justamente sob a marquise que antecede a entrada de um desses grandes templos de consumo (a propósito: estará morto? Terá bebido além da conta? O que significa beber demais sob tais circunstâncias? Bem, isso pouco interessa, o ar condicionado já faz esquecer essa incomodação).

Mas há outros espaços em que a pobreza – esse mal que os cidadãos de bem têm medo que os contamine – está do lado de fora, e deve ficar claro que esteja, custe o que custar: são os condomínios fechados e bairros vigiados em que vivem os estratos economicamente superiores. Isso deve ser garantido, aliás, não só pela segurança privada, mas pelas forças do Estado. Em 2017, um comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo (a existência de um poder militar para atuar nos limites internos da nação é prova de que vivemos em guerra permanente) afirmou que a abordagem a uma pessoa na região dos Jardins, onde estão vários bairros nobres (a própria designação já é um escárnio) da capital paulista, deve ser diferente daquela que é feita nas áreas periféricas da cidade³. Muito antes dele, no documentário Notícias de uma guerra particular, de João Moreira Salles e Kátia Lund (1999), o então chefe da polícia civil do Rio de Janeiro, Hélio Luz, já dizia, em misto de desabafo e amargura, que a função de seus comandados era segregar as populações pobres das comunidades, deixando-as longe dos cidadãos do asfalto. Não deixam de impressionar essas falas – desfaçadas ou críticas –, mas hoje a situação parece estar ainda mais fora de controle, se considerarmos o que vem acontecendo na Bahia, sob a governança do petista Jerônimo Rodrigues, sucessor de Rui Costa, atual ministro-chefe da casa civil de Lula, e em São Paulo, em que a atuação de Tarcísio de Freitas e seu secretário de segurança pública, Guilherme Derrite, ambos bolsonaristas empedernidos, vêm promovendo uma desastrosa política de insegurança, principalmente para as populações periféricas. Os mortos já sabemos quais são, preferencialmente, ainda que não gozem eles da exclusividade da condição de alvos: homens jovens e negros.

Se a sociedade brasileira está em guerra permanente, e o Estado protege um dos lados, é porque nela tudo se tolera. Nos últimos dias, no contexto da catástrofe no Sul, pudemos ler na imprensa sobre um condomínio de casa em Pelotas, Rio Grande do Sul, que dispõe de uma estrutura clandestina⁴ para drenar o excesso de água que assola suas residências e ruas. O destino das águas é um córrego que fronteiriça o muro fortificado do agrupamento nobre e uma comunidade empobrecida, em que a presença de pessoas negras é muito grande. Vários, aliás, têm destacado a presença da população afrodescendente no Rio Grande do Sul, eclipsada pelo imaginário em torno do gaúcho de origem alemã ou italiana. O escritor Jeferson Tenório foi ao ponto: “Em discurso sobre as enchentes, dias atrás, o presidente Lula disse ficar surpreso com a grande quantidade de negros no Rio Grande do Sul. Essa percepção faz parte de um senso comum bastante arraigado no Brasil, e é fruto de um projeto de embranquecimento e apagamento das comunidades negras no estado. Um projeto bem-sucedido que há séculos invisibiliza não só a presença de pessoas negras, como também sua contribuição crucial na construção do estado”⁵.

Traficados, escravizados, mortos, explorados e esquecidos, depois eclipsados, eis o que acontece com a população negra no Rio Grande do Sul, crime que fica ainda mais gritante se considerarmos sua participação no mito fundador do gaúcho como figura valente e dedicada à sua terra, a Revolta Farroupilha – aquela mesma que prometeu o fim da escravidão e depois negociou os termos de rendição com o Império sem que isso prevalecesse. Moniz Sodré foi preciso no comentário sobre essa tradição narrativa: “O que pouco ou nada se diz é que a destreza com montaria, lanças e boleadeiras era apanágio dos haussás, heróis da Revolução Farroupilha no Batalhão dos Lanceiros, composto de escravos. (…) O pano de fundo dos brasões tradicionalistas gaúchos é afro, 20% da população é negra. Na dignidade da reconstrução, há de se ressignificar o racismo contra ‘pelos duros’ e peles escuras como um contrassenso”⁶.

Como Tenório escreveu, ecoando uma posição que é sintomaticamente desprezada pela extrema-direita, não pode haver esquiva em relação ao fato de que há racismo ambiental nisso tudo. Somaria algo, que é relembrar que a crítica ambiental sem que o alvo seja o capitalismo é como enxugar gelo, em nada vai fazer avançar, de fato, a superação do que é estruturalmente perverso entre nós. Tanto os recursos que chamamos de naturais, a exemplo dos mananciais, quanto os de infraestrutura, como o transporte público, são delimitadores dos lugares de cada um na cidade. Naturalizamos a segregação na mesma ordem com que louvamos o desenvolvimento e o progresso urbanos. Mas, o que eles significam? A quem se destinam? Cada um no seu lugar, e o Estado que nos proteja dos excluídos e, junto com ele, os agentes de segurança privada que contratamos. Mais ou menos como nos shoppings centers e no condomínio em Pelotas, mais ou menos como em todo o Brasil. 

Para saber mais

¹ https://anpocs.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Boletim_ER_016.pdf

² https://www.youtube.com/watch?v=CzX6AHmdG_A&t=602s

³ https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm

⁴ https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/05/24/apavorados-e-revoltados-como-estao-afetados-por-duto-de-condominio-no-rs.htm

⁵ https://noticias.uol.com.br/colunas/jeferson-tenorio/2024/05/21/tragedia-no-rs-apaga-pessoas-negras-e-escancara-racismo-ambiental.

⁶ https://www1.folha.uol.com.br/colunas/muniz-sodre/2024/05/valente-caramelo.shtml

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