Vovô viu a uva?
Jacqueline Caixeta
O processo de aquisição da leitura e escrita é um delicioso mistério que passa pela cognição da criança e conta com um amadurecimento neural. É fantástico presenciar momentos de descobertas, em que a criança vai soletrando e, de repente, se vê lendo uma palavra. Uma emoção enorme escutar: “Jacque, eu li”! Vivi essa emoção por muitos anos trabalhando com alfabetização, e posso garantir que é uma festa!
Se me perguntarem quando é que começa o processo, eu digo que é quando a criança nasce. Isso mesmo, ao nascer ela abre os olhos e começa a ler o mundo à sua volta. É bem filosófico este pensar, mas é tão real quanto encantador. A criança vai descobrindo o mundo através de seus olhos curiosos e basta que nós, pais e escola, saibamos lhes proporcionar momentos de descobertas.
Por muitos anos, se achava que a simples decodificação de letras e sons bastava para que o indivíduo ganhasse o mundo entrando pela porta da frente ao saber ler e escrever. No entanto, fomos descobrindo que ler e escrever, apenas com aquela primeira magia e encanto de descobrir o casamento das letras com os sons, não era o suficiente para ninguém ganhar mundo nenhum.
Emília Ferreiro veio nos apresentar o caminho do pensamento da criança ao ir conectando-se com o mundo da leitura e escrita, e isso nos ajudou muito a avançar com uma aprendizagem mais significativa. No entanto, não podemos dizer que o processo se encerra aí. Saber ler e escrever apenas decodificando símbolos não diz de uma alfabetização que visa um letramento.
Precisamos buscar, incansavelmente, levar nossos alunos a conquistarem bem mais do que o saber ler e escrever. É preciso que saibam ler e escrever discutindo o contexto do que aquelas palavras trazem, avançar no pensamento crítico sobre a leitura e escrita, para que a compreensão textual esteja presente em cada ato mecânico de se ler algo.
Paulo Freire nos desafiou muito a buscar o letramento, não só a alfabetização. Quando ele dizia que não bastava que o aluno lesse que “Vovô viu a uva”, mas que se questionasse sobre tal frase. Freire nos fez pensar sobre questões sociais e políticas que estavam por trás de cada frase, que o aluno buscasse criar relações através de questionamento e situações problemas que os levassem a saber bem mais que o que a frase dizia.
Ler e escrever precisa ser um ato político, muito além de ser simplesmente uma conquista pedagógica, cognitiva. Trabalhar a alfabetização visando o letramento, ousando em levar o aluno a pensar sobre a escrita, interpretar, questionar e inferir sobre o ato de ler e escrever, é, de fato, abrir-lhe as portas para o mundo.
Quem não pratica uma leitura crítica, jamais terá um olhar questionador sobre as coisas. Um aluno que se dá por satisfeito apenas acreditando no que leu, sem ao menos duvidar de nada, certamente será um ser passivo, propício à manipulação de todos os lados, sem autonomia alguma para atuar como um cidadão consciente de seu papel no mundo.
Quem não ler com criticidade, não produz saber. Para interpretar o mundo, o aluno precisa, primeiro, interpretar as escritas que encontra pelo mundo.
Infelizmente, algumas escolas pouco contribuem com esse estímulo ao pensar criticamente sobre o ato de ler e escrever. O que se vê são escolas que querem seus alunos bons de decorar para tirar boas notas em provas. Isso faz parte e precisa ser trabalhado, sim, até mesmo porque o sistema fora dos muros da escola querem é isso; pessoas que passam em provas para ingresso à universidade e concursos, no entanto, tais alunos, “produtos” dessas escolas, pouco saberão produzir algum tipo de conhecimento, serão apenas reprodutores de saberes tidos como verdadeiros e prontos. Não teremos, assim, uma sociedade de pessoas criativas, críticas, autônomas e livres para pensarem o mundo além de suas bolhas.
Com afeto,
Jacqueline Caixeta