A juventude e suas vicissitudes: smartphones como sofrimento
Alexandre Fernandez Vaz
“Li o texto todo sem olhar nenhuma vez no celular”, foi o que disse a um amigo querido o colega a quem ele enviara seu trabalho. Considerando que se tratava de um ensaio complexo e muito bem escrito, e olhando o que é nossa experiência perceptiva contemporânea, foi um comentário muito positivo. Sintomática de uma época, a anedota encontra eco em um sem-número de outras situações que vivemos a cada dia, a cada momento. A sintomatologia é extensa, atingindo, por exemplo, os cadernos de cultura dos jornais, que são escassos (os próprios diários já quase não existem) e com textos cada vez mais breves. Afinal, quem tem concentração suficiente para ler alguma coisa com mais de 30 linhas na tela ou no papel? Para que ler o periódico, se as redes sociais já trazem tudo o que se quer ler e ouvir?
O mesmo vale para o audiovisual. Não foi sem espanto que soube por meus alunos, já faz uns anos, que era possível acelerar a imagem de um capítulo de série (que já são curtos) ou mesmo de um filme, em plataformas como a Netflix e o Youtube. Era o mesmo que vários faziam também com as aulas gravadas e transmitidas durante a pandemia de covid-19, me disseram. Naqueles meses de crise, aliás, um órgão da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde trabalho, recomendou que elaborássemos aulas que fossem atrativas, de forma que fossem capazes de competir com as notificações das redes sociais. Era uma tarefa inglória, certamente, mas, mais que isso, equivocada. O encontro entre docente e estudantes não precisa ser desagradável, mas o cerne desse acontecimento é outro: a experiência do conhecimento. Certas preocupações são mais adequadas para um programa de auditório, um parque de diversões, um shopping center, não para a educação.
Por falar em pandemia, lembre-se do que disse certa vez aquele que presidiria o país quando muitos sofreriam de angústia, medo, doença e morte: “Um pai prefere chegar em casa e ver o filho com o braço quebrado no futebol, e não brincando de boneca”. A lamentável figura política mostrava com clareza, como sempre fez, suas posições. Pois bem, nos Estados Unidos da América, frente a cuja bandeira Jair Messias fez questão de prestar a continência, os jovens têm sofrido menos fraturas do que as gerações anteriores, e isso não se deve ao fato de estarem vivendo a fantasia dos jogos infantis, experiência tão rica e necessária para o desenvolvimento e, antes disso, para o bem-viver – pouco importa se a bonecas são ou não os brinquedos preferidos. É que, segundo reportagem do site da revista Piauí, crianças e jovens estão de tal modo conectados a seus smartphones, que seus ossos estão hoje mais preservados que outrora. O mesmo não se pode dizer, no entanto, de sua saúde mental.
Desconheço se há dados dessa natureza no Brasil, mas a observação de jovens onde quer que estejam (o mesmo vale para os adultos), autoriza a especular que as coisas não são muito diferentes na América do Sul. É evidente o demérito do conteúdo que pode ser acessado, tema que é muito importante e que não tem merecido a devida atenção no país em que se censura livros por seu conteúdo narrativo, mas, quando a discussão é sobre regulação da internet, diz-se que isso seria atentar contra a liberdade de expressão. De fato, pornografia, incentivo à automutilação e ao suicídio, mentira, misoginia, racismo, homofobia, transfobia, capacitismo e outros crimes, abundam na rede, assim como modelos corporais idealizados que só podem mesmo frustrar adolescentes (e pessoas adultas, às vezes até crianças) à procura de aceitação. Chamo a atenção, no entanto, para outro aspecto, muito enfatizado na referida reportagem, que é a produção exponencial de ansiedade, conforme destacado por Johathan Haidt, autor do livro The Anxious Generation – How the great rewiring of childhood is causing an epidemic of mental illness. Trata-se, aliás, do que, com outro vocabulário e abordagem, Christoph Türcke chamou de cultura do défice de atenção. Ou seja, algo que todos, de alguma forma, partilhamos, mergulhados na mesma universalidade caótica que transferiu a imaginação – essa capacidade tão humana e tão importante para nos ajudar à liberdade – para as telas eletrônicas.
O vício, portanto, não atinge só os jovens, mas é assustadora a adição ao smartphone de uma geração que já nasceu com o mundo mediado por ele. O aparato, que se transformou em prótese de todos e de cada um, é veículo de múltiplos estímulos, incessantes, infinitos, com notificações que excitam e pressionam “lembrando” que é preciso voltar rapidamente à tela, caso seu portador, por descuido, se tenha desconectado. Já foi dito que os olhos são a janela da alma. Se é assim, o acordo com Mefistófoles não foi para alcançar conhecimento, juventude e sedução. A alma foi facilmente entregue em troca do direito de sofrer sem pausa.