Pulsões filosóficas do termo “negro”: entre Kemet e Educação 

Marcos Borges dos Santos Júnior

Ao refletir sobre múltiplas questões da população negra brasileira, é possível em algum momento não debater a própria reflexão sobre a pulsão filosófica do termo “negro”, não numa tautologia permeada pelo racismo contemporâneo ou ressignificada através do Movimento Negro (MN), mas propositalmente a respeito das pulsões africanas ou afrodiaspóricas que vem percorrendo durante séculos. Seja como for, desbravar as minuciosidades do termo “negro” levanta possibilidades de se enunciar as relações entre questões étnico-raciais e educação.

Como ponto de partida, é plausível desfrutar da pesquisa de Renato Noguera sobre “Denegrir a educação” (2012), um posicionamento na pluriversalidade epistemológica educacional que visibiliza (e legitima) as epistemes “negras” como potência e possibilidade de ser e existir no “mundo vivido”. Neste emaranhado de percepções, evoca-se a concepção filosófica do termo “negro” no Kemet (antigo Egito) que denota

Em linhas muito gerais, na mitologia egípcia, Nut é a deusa do céu e Geb, deus da terra.  Enquanto esta é masculina, o céu é feminino. O céu é fecundado pela terra para que possa dar luz às primeiras deusas e primeiros deuses e o mundo seguir seu curso. Pois bem, o céu tem uma rotina importante que deve ser acompanhada pelos seres humanos. Nut engole o sol todos os dias no crepúsculo sobre as montanhas do oeste e dá luz na aurora. A terra é negra e o sol precisa da negrura do ventre de Nut para ser revitalizado e renascer no dia que virá.  Num direto espelhamento da ação contínua de Nut de engolir e parir o sol, o hábito humano deve ser sonhar, dormir tem o sentido de enegrecer, isto é, acolher o sol ou simplesmente, viver no mundo dos sonhos.  Num registro, negro, negra, preta, preto e escuridão são sinônimos de lugar que revitaliza, fertilizante, fértil, de criação e renovação. […] negra, negro são termos que remetem ao mundo dos sonhos, território de revitalização da existência.  Segundo Ford [1999], outro vocábulo da raiz de negro e negra é Níger. Uma palavra latina que batiza um rio e derivaria de ngr – palavra de origem semita – que significa “água que corre areia adentro” (Idem) […]. Afinal, retomando o mito egípcio, se a deusa egípcia Nut engole sol no oeste, fazendo dele objeto de sua gestação, é para o nascimento renovado na aurora. […]. Negra e negro denotam a morada do sol e a terra fértil. Nos termos de Ford, “a direção do sol poente, simbolizado a imersão da consciência humana no sonho (…) uma noção diferente de preto, negro, como um símbolo poderoso de renovação e transformação” (FORD, 1999, p.38-39). Portanto, denegrir é definido como regeneração.  Ou seja, tornar-se negra, tornar-se negro significa revitalizar a existência (NOGUERA, 2012, p. 66, 67 e 68).

Diferentemente da concepção do termo “negro” que vigora na contemporaneidade, fincada numa simbiose com o racismo, a pulsão filosófica do “negro” no Kemet (Egito antigo) refere-se num movimento existencial entre a prática divina e compreendimento biológico, isto é, uma dialogicidade na constituição da percepção “humana” que concebe “Eu” e “Outro”, a interioridade e exterioridade. E tal percepção sobre “negro” eclode no sonhar, na criação e revitalização, ou melhor dizendo, na produção finita/infinita das possibilidades e potências de modulação espaço/tempo, distanciando-se na perspectiva produtiva e futurista, sendo voltada para continuidade de existência.

Mesmo com produções imagéticas desde a antiguidade greco-romana que “visavam” a África como lugar infernal e seus habitantes como demônios, ganhando até justificações bíblicas de população amaldiçoada (SANTOS, 2002) é relevante expressar que tal ponderação do conceito de “negro” (ou nos limiares a África) reverbera na revitalização da autossuficiência e autonomia de um povo. Se já é mais fácil imaginar o declínio da “humanidade” do que o término do racismo, pensar numa base epistemológica africana que positiva “ser negro” sem os meandros do “racismo ou protorracismo” (MOORE, 2012) é propulsionador para projetar outras formas existenciais não delimitadoras pelo marcador.

É oportuno identificar o papel da educação na construção da existência, já que pode ser entendido como um rito de passagem para vida em comunidade ou no “mundo vivido” (SODRÉ, 2012). Trata-se de correlacionar os vínculos ancestrais da África com o Brasil nos desdobramentos educacionais, afastando-se dos determinismos de retornar a uma possível gênese, mas adentrando na expansão pluriversal epistemológica. Existem aberturas, especificamente na “educação formal/escolar”, seja pela lei 10.639/03 que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira e posteriormente africana nas redes de ensino ou pelo referencial teórico-metodológico Pretagogia (PETIT, 2015), que é direcionado para formação docente a partir das percepções étnico-raciais.

Para não me estender mais, o termo “negro”, pela “ótica” do racismo, tem a capacidade de delimitar o “Mundo vivido”, enquanto que, pelas epistemes “negras”, é possível uma percepção de projeção revitalizadora para “ser” e existir, se destoando da psique do racismo (CUTI, 2017). E a educação tem uma função fundamental para produção e expansão dos termos como “negro”.

Para saber mais
BRASIL. Presidência da República. Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1997, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Acesse aqui.

CUTI. Quem tem medo da palavra negro. In: KON, Noemi Moritz; ABUD, Cristiane Curi; SILVA, Maria Lúcia (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 197 – 212.

MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. 2. Ed. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.

NOGUERA, Renato. Denegrindo a educação: Um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Número 18: maio – out/2012a, p. 62-73. Acesse aqui.

PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral, contribuições do legado africano para a implementação da lei nº 10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015.

SANTOS, Gislene Aparecida dos Santos. A invenção do ser negro: um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002.

SODRÉ, Muniz. Reinventando a educação: diversidade, descolonização e redes. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.


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