Os cem anos da Semana de 22 – parte III

Alexandre Azevedo 

No meio de sua récita, a plateia começou a latir desbragadamente, fazendo com que Ronald Carvalho interrompesse a sua apresentação para bradar furioso: “No meio da plateia há um cachorro e, com certeza, não está do nosso lado!”. Foi aí que a plateia trocou os latidos pelos coaxos. E entre todos os sons possíveis e imagináveis soltados pela plateia em polvorosa, Ronald Carvalho continuou firme a sua declamação até o fim. Não foi à toa que “Os Sapos”, poema de Manuel Bandeira, tornou-se uma espécie de hino dos escritores da geração de 22, formada logo após o término da Semana de Arte Moderna.

Na terceira e última noite, dia 17, foi a vez do maestro e compositor Heitor Villa-Lobos. Trajando casaca e cartola, como mandava o figurino, a plateia percebeu que o artista calçava em um pé um sapato e no outro um chinelo de dedos, além de segurar um guarda-chuva. Sentindo-se afrontada, a plateia mais uma vez não perdoou e as vaias vieram à tona novamente, ainda mais fortes. Um poeta que procurou revidar às vaias com xingamentos, foi atingido pelo próprio pianista com o seu guarda-chuva, evitando que ele caísse nas provocações da plateia. Mais tarde, Heitor Villa-Lobos confessou que estava impedido de calçar o sapato devido a uma unha encravada. A verdade é que a Semana de 22 não teve o efeito que os artistas esperavam, talvez pelo fato de não haver um ideário mais bem definido. Tanto assim que, após a sua realização, os participantes tiveram que criar manifestos, grupos e revistas para a consolidação do movimento modernista, valorizando o nacionalismo, o primitivismo, a poesia caipira e de exportação, como os manifestos Pau-Brasil e Antropofágico, os grupos Anta e Verde-Amarelo, as revistas Klaxon e Terra Roxa e outras terras. Até mesmo alguns participantes, como Afonso Schmidt, negaram a participação do conturbado evento.

Algumas lendas (ou não tão lendas assim) surgiram com o passar do tempo, como a de que o próprio Oswald de Andrade teria “comprado” boa parte da plateia, distribuindo dinheiro aos estudantes da conservadora faculdade de direito do Largo do São Francisco, onde ele próprio estudara, para “detonarem” com as apresentações, jogando tomates e ovos podres nos participantes, principalmente nele próprio. Dentre esses alunos estava António de Alcântara Machado, descendente de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo, que logo depois se engajaria nas propostas do Modernismo ao publicar “Brás, Bexiga e Barra Funda”, introduzindo em nossa literatura o personagem ítalo-brasileiro com o seu típico português-macarrônico. Segundo os que concordam com isso, Oswald de Andrade não queria que a plateia agisse de uma forma “acadêmica”, comportada, aplaudindo respeitosamente ao final de cada apresentação. A ideia, aparentemente absurda, era que a plateia se comportasse também de maneira anti acadêmica, unindo-se aos participantes da Semana. Para muitos estudiosos, foi uma tacada de mestre de Oswald de Andrade. Até mesmo Mário de Andrade, um dos mais importantes personagens da Semana, não ficou muito satisfeito em participar do evento, o que pode ser constatado no artigo escrito por ele no jornal O Estado de S. Paulo, após vinte anos da realização do evento: “Com ou sem a Semana, minha vida intelectual teria sido o que tem sido”.

Se a Semana de 22 teve o seu “fracasso” por falta de um ideário mais consistente, o certo é que, com o correr do tempo, ela passou a ser estudada com maior afinco e dedicação, tendo o seu valor notadamente reconhecido como o maior evento artístico-cultural realizado no Brasil do século XX e o último a promover efetivas mudanças na cultura nacional. Dentre os seus bons frutos, pode-se citar o Tropicalismo (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e os Mutantes) e a Bossa-Nova (João Gilberto, Baden Powell, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Nara Leão e Elizeth Cardoso).


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