O pensamento moderno disse para não prestar atenção neles

Tiago Tristão Artero

Uma educação decolonial deve ser anticapitalista e superadora da modernidade. Infelizmente, há muitas abordagens anticapitalistas que não são decoloniais (mantém uma cultura única.

As contradições da modernidade manifestam-se no epistemicídio… no genocídio epistemológico diário que acompanha a extinção em massa das vidas humanas e de todo tipo de vida. Em algumas visões/filosofias indígenas, a própria mineração constitui a morte de um parente e entendem que as imensas montanhas destruídas, os milhares de quilômetros de perfuração para retirar petróleo liberam pandemias que, antes, estavam protegidas pelo solo e pela natureza.

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Estes saberes denominados não científicos e mitológicos dizem que a fumaça decorrente da indústria e dos combustíveis fósseis constituem-se de verdadeiras nuvens de doença. Hoje, sabe-se que locais onde há poluição as doenças se proliferam com maior rapidez.

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Quando Davi Kopenawa fala do pensamento dele e de seus ancestrais que contam sobre ‘queda do céu’, as pessoas de mentes colonizadas desdenham. A porcentagem irrisória de 0,01% a 0,1% de espécies extintas por ano constituem em torno de 200.000 espécies extintas anualmente… o que significa mais de 200 espécies por dia. Para estas centenas de espécies extintas a cada dia, o céu já caiu. O céu também cairá sobre o ser humano, materializado no conceito de Antropoceno (que algumas/alguns corajosas/os cientistas mostram… sendo um ponto planetário sem retorno).

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Quando os povos ameríndios (chamados, também, de indígenas) da língua Guarani secularmente nomeavam o local onde foram instaladas as usinas nucleares de Angra como sendo ‘Itaorna’, ou seja, pedra mole (terra que se mexe), os pretensos sujeitos modernos acondicionaram materiais mortais às vidas, desconsiderando a falha geológica já apontada pelos povos.

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Os povos da África que foram arrancados e trazidos para cá, para a região chamada América do Sul (que em nada se identifica com Américo Vespúcio) e que se juntaram com os povos indígenas construíram uma cultura que é atacada diariamente… desde a época da invasão, até hoje.

As culturas que foram subalternizadas aplicavam e aplicam uma pedagogia circular, da roda, onde todas/os se olham, onde a coletividade está acima das opressões, onde cada toque de tambor ou de maracá possui uma linguagem e significado; onde a oralidade marca a valorização das velhas, dos velhos e da ancestralidade… um exemplo sobre a democratização dos saberes. Milenarmente já praticam o que elitizadamente chamamos de práxis ou de metodologias ativas (com um sentido bastante diferente sobre a vida e o saber). Já dispunham dos melhores métodos (não falo sobre eficiência capitalista).

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Os povos indígenas acolheram os imigrantes famélicos, fedidos e em ponto de quase morte europeus; também acolheram a população quilombola. Os chamados “selvagens” deram (e continuam dando) a base mais sofisticada ao que chamamos hoje de “direitos humanos”.

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…

Lá trás, anos após este acolhimento, as doenças modernas promoveram genocídios, as armas de pólvora e biológicas promoveram os assassinatos e os estupros coletivos cometidos pelos brancos (nas tentativas de “depuração” da raça) geraram o que é chamado hoje de “pardo”. Os pardos vieram das negras e índias estupradas. Mesmo havendo o parentesco ancestral que poderia identificar as ligações, Rui Barbosa fez questão de queimar os documentos com os nomes originários, substituindo pelos sobrenomes dos assassinos da própria família.

Hoje, ostentamos os brasões dos invasores.

As bases de conhecimento que vêm da ancestralidade e os modos de vida não se perderam totalmente e existem, resistem, movimentam-se em direção aos resgates. Mas faço a pergunta:

Quando estamos trabalhando isso? Há espaço entre nossxs alunos pra oralidade? Pra oralidade de seus povos e velhos? De seus mestres? De sua filosofia, dos xamãs, caciques? Dos quilombolas? Estamos contribuindo para este resgate ou reforçando o genocídio epistemológico?

É preciso pensarmos no alargamento das gramáticas. Por que somente uma forma correta de se comunicar (colonizada e colonizante)? As palavras corretas? Corretas de acordo com qual cultura? O que ocorreria se ao invés de “Deus abençoe”, um “Exu te guie”; no lugar de “Bom dia”, um “Salve, um mba’éichapa”?

Na educação e na sociedade o embate tem que ser no campo simbólico, pois assim a violência se manifesta frente a conhecimentos não alinhados ao capitalismo e que resistem ao colonialismo. Não adianta ser só em relação a pele e fenótipo. Tanto é verdade que os pardos foram incorporados como “quase brancos”… os próprios aplicativos da internet embranquecem, outros mercantilizam a moda negra e indígena. A luta é pelos saberes e modos de vida, pela devolução dos territórios.

Os saberes complexos sobre o mundo, o conhecimento que estas culturas produzem são sofisticados e não podem ser desvalorizados diante de outra que se acha superior. A Lei 11.645/08 não deve ocorrer somente como um enxerto. Pelo contrário, deve orientar os conhecimentos escolares, em igual peso em termos epistemológicos e organizacionais.

No âmbito escolar, as alunas e alunos tem que saber que a história de suas famílias foi roubada, os seus sobrenomes, a sua ancestralidade. E foi reconstruída em alguns espaços como culturas diaspóricas reinventadas nas comunidades, na corporeidade integrada à natureza, nas rodas, na música, nos tambores, na vadiação da capoeira, nos terreiros, nas aldeias e quilombos… na gastronomia das florestas, do campo e das cidades. Está pulsante, é potente e é bonita.

Dizem: adaptem-se e sigam o padrão, se vistam da roupa mais colonizante possível, usem as palavras certas que as ideias de empreendedorismo indicaram, trabalhem alienadamente (muito mesmo) e depois enriqueçam a indústria farmacêutica.

Nestas cidades pensadas como empresas, ainda procuramos o espaço da birosca, dos bancos da praça, do terreiro, da quitanda, da valorização da oralidade, dos barracões em que a cultura popular resiste. Procuramos vencer este adestramento que evita que o mundo se transforme, seja mais solidário e não creia que a “grande mão assassina invisível do mercado” irá nos salvar.

Nestes tempos, vivemos uma verdadeira batalha entre o Bem estar social (para pouquíssimas pessoas e países) x Bem Viver (democrático, para todas e todos).

As culturas marginalizadas nos dão as bases filosóficas para que outro mundo seja possível.

A ancestralidade pulsa!

Mas o pensamento moderno disse para não prestarmos atenção neles…


Imagem de destaque: Katiabraga / Pixabay

  http://www.otc-certified-store.com/arthritis-medicine-europe.html zp-pdl.com https://www.zp-pdl.com https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php http://www.otc-certified-store.com/beauty-products-medicine-europe.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *