Manipulação de resultados eleitorais

Wojciech Andrzej Kulesza

O amanhecer do dia é um fato cotidiano. Contudo, a afirmação de que “o Sol nasceu” pressupõe uma representação do fenômeno no qual o Sol se movimenta. Que o Sol gira em torno da Terra e que por isso o fenômeno se repete periodicamente. A persistência dessa representação intuitiva e de sua elaboração progressiva resultaram na construção da concepção geocêntrica do universo, no seu aprimoramento matemático e na sua utilização para previsão de fenômenos celestes, tais como eclipses e movimentos dos planetas.

O aperfeiçoamento dessa representação, essencialmente geométrica, produziu imagens do universo com a Terra em seu centro, imagens intensamente exploradas em diversas manifestações culturais ao longo do tempo, como é atestado, por exemplo, por nossas concepções de céu e de inferno. Essa representação gráfica seria mantida pelo modelo copernicano, agora com o imenso Sol, no centro do sistema, imagem usada por Rutherford em seu modelo atômico, com o núcleo massivo no centro e elétrons em sua órbita.

Enquanto o amanhecer continua acontecendo, multiplicam-se os pensamentos, as falas, as interpretações do que isso significa, desde a repetição de um ciclo, até o despertar de um novo mundo. Não obstante, em muitos caso, ser muito difícil estabelecer essa distinção entre o fenômeno e o que se diz a seu respeito, (por exemplo, veja-se a dificuldade em separar nossa fala sobre a linguagem, da linguagem na qual a expressamos), essa diferenciação é muito útil para analisarmos as fake news que nos infestam.

Os negacionistas, em geral, não negam os fenômenos, mas suas representações: os discursos elaborados sobre eles e as narrativas neles baseadas. Eles almejam trazer para o debate não o que foi observado, mas o que foi relatado sobre o fenômeno, mesmo que o relato tenha sido feito por quem não o observou. Deste modo, o conhecimento dos fenômenos fica em segundo plano, valorizando-se suas representações, suas explicações, suas consequências, enfim, o que é que eles têm a ver com nossa vida.

Nas versões do fenômeno, assim produzidas, são muitas vezes ocultados, intencionalmente ou não, detalhes importantes captados pela observação real, desfigurando totalmente o fenômeno. Pelo seu poder de síntese, essas deformações são mais evidentes quando as representações são apresentadas graficamente para serem mais bem apreendidas pelos olhos, tais como as ilustrações do óvulo e do espermatozóide presentes nos livros didáticos que dão ao estudante a impressão de serem ambos do mesmo tamanho!

Com a popularização da imprensa, essas representações são disseminadas na sociedade, ao mesmo tempo que vai se elaborando uma representação padrão, desprezando as outras. Esse processo é muito claro no campo científico, em que é preciso que haja “revoluções” para que se alterem as representações dos fenômenos. Com o crescimento das redes sociais e o consequente aumento da velocidade de compartilhamento de informações para o grande público, fica cada vez mais difícil estabelecer esses consensos.

O controle pela grande imprensa desse processo de “depuração” das representações sofreu um grande abalo devido à concorrência promovida pelas tecnologias da informação e concretizada pelas redes sociais. Ainda assim, ela ainda é muito influente na propagação de interpretações da realidade que reforçam a posição dos grupos hegemônicos na sociedade, principalmente durante seus momentos críticos, como as eleições para presidente realizadas este ano no Brasil.

Podemos ilustrar esse processo de falseamento da observação, analisando as representações gráficas do resultado das eleições de 2022.  Para isso, consideremos um país imaginário formado por apenas três estados. Dois estados com a mesma área geográfica e 100 eleitores e o terceiro com o dobro da área desses dois, mas com apenas 50 eleitores. Suponhamos também que todos os eleitores votaram e que os votos foram consignados para apenas dois candidatos. Registrando os votos de um candidato em azul e do outro em vermelho, podemos visualizar o resultado das eleições de acordo com a figura abaixo:

Dessa maneira, podemos ver que o candidato azul obteve 40 + 60 + 20 = 120 votos, enquanto que o candidato vermelho obteve 10 + 40 + 80 = 130 votos, vencendo o pleito. Observe-se que os números que representam a quantidade de votos unitários poderiam representar milhares ou milhões de votos, sem que haja nenhuma modificação em nosso argumento. Contudo, a representação gráfica desses resultados pela grande imprensa, uma vez que o candidato azul venceu no maior estado e num pequeno, e o candidato vermelho só venceu em um pequeno, os mapas eleitorais seriam divulgados assim:

Como se pode ver, na representação da grande imprensa o candidato azul aparece como vitorioso!

Certamente esta representação foi inspirada na última eleição estadunidense, inclusive utilizando as tradicionais cores dos partidos republicano e democrata, em que essa representação tem sentido, porque a vitória dos partidos nos estados garante seus representantes no Colégio Eleitoral que elege o presidente, mas não aqui, em que a eleição é direta. Claro que podemos fazer representações mais confiáveis, por exemplo, usando matizes de cada cor para representar a quantidade de votos em cada região.

Como nosso argumento se aplica aos Estados com seus Municípios, é provável que encontremos a situação descrita na realidade brasileira, dada a diversidade das áreas e das populações de nosso país. Todavia, como mostram os mapas eleitorais elaborados pelo LabCidade, o aprimoramento das representações exprime com mais fidelidade o resultado das eleições, além de fornecer novos insights sobre o seu significado em cada região e, por último, mas não menos importante, ao não deturpar o resultado da votação, não compromete nosso amanhecer.

 

Para saber mais
Labcidade, sítio do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade da USP. Acesse aqui.


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