Crianças, política, infantilização

Alexandre Fernandez Vaz

Ao que parece, nunca demos tanta importância às crianças quanto hoje. Isso não chega a ser novidade, mas, de qualquer forma, vale destacar tamanha ênfase que já se vê naturalizada entre nós. Nem sempre foi assim, tampouco faz muito que as coisas mudaram. Desde que a modernidade inventou a infância, pelo menos nos termos que a conhecemos atualmente, emergiram os pequenos como questão para a vida pública. O século vinte deu um impulso para esse processo, tanto porque o seu início marcou um grande interesse pelo tema (já presente, na verdade nas décadas imediatamente anteriores), a exemplo de obras como as de Sigmund Freud, Lev Vigostky e Jean Piaget, quanto porque, entre outros marcos, 1979 foi escolhido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) como o ano internacional da criança. Pouco mais de duas décadas antes, a mesma instituição anunciara, na esteira da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos Universais das Crianças. Entre uma e outra data, Pelé, ao fazer seu milésimo gol, dedicou-o a elas.

Em meio a todo esse movimento, e já no final do século, em 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um documento fundamental que ajudou e tem ajudado a civilizar o Brasil. Não foi sem gritos e ranger de dentes que o documento foi recebido, e até hoje aqui e ali torce-se o nariz para ele. Por um lado, se dizia que pais e mães perderiam sua autoridade perante os rebentos, por outro, que haveria forte incentivo à criminalidade, uma vez que jovens com até 18 anos estariam fora do alcance da Lei. Nem uma coisa, nem outra: a nova legislação propunha para crianças e jovens o avanço em direitos como o de não sofrerem violência, ao mesmo tempo em que levava a sério a possibilidade da medida socioeducativa, que não exclui a punição, mas procura especialmente a recuperação depois do cometimento do ato infracional.

Pensar nas crianças como sujeitos de direito é um enorme avanço, ainda que o caráter universal de tal condição não se dê, nem de perto, por completo. Ao mesmo tempo em que existem muitas experiências de infância, atravessadas por gênero, geração, etnia, religiosidade, entre tantos outros elementos, há muita desigualdade e, malgrado os esforços realizados, trabalho, prostituição e outras formas de exploração dos pequenos não foram erradicadas no Brasil. Somados a isso, racismo, homofobia, capacitismo e transfobia vitimizam crianças e jovens nos ambientes educacionais e fora deles. Nosso cuidado com a infância tende, nesse quadro, a ser seletivo e perverso: há crianças para fazer viver, há outras para deixar sofrer.

Não tem sido pouca a evocação, em disputas eleitorais recentes, da proteção às crianças como um problema político de primeira grandeza. O tema emerge, no entanto, na perspectiva do pânico moral, como se elas estivessem sob a ameaça de uma grande conspiração homocomunista ou coisa que o valha. A escola e as unidades de educação infantil seriam territórios de alto risco, eivados de esquerdistas dispostos a todo tipo de maldade. Não foi sem uma ponta de espanto que presenciei no último pleito candidatos dizendo-se professores “de direita”, como a tentar convencer que eram, por isso, postulantes confiáveis ao cargo de vereador.  

Cuidar dos novos que chegam neste mundo, apresentando-o a eles, é uma responsabilidade dos adultos, diz Hannah Arendt. Defender o mundo da ameaça de destruição é também uma incumbência que cabe aos maiores. É por isso, escreveu a grande filósofa, que a educação é um problema político, embora seja um erro politizar as crianças – estas devem ser formadas para a vida pública, para a participação nos interesses da pólis. Levar a sério tal mandato inclui outro tópico que, neste momento, parece fazer mais sentido do que nunca. Ele diz respeito a um ser que não é criança, mas que igualmente habita o largo espectro da infância, ainda que de maneira um tanto clandestina: o infantilizado, que além de renunciar à autonomia, se vê impossibilitado de cuidar dos menores.

O adulto despolitizado (mesmo que não se perceba como tal ou que defenda ardorosamente um candidato) é certamente um produto dos esquemas da indústria cultural, com seu conteúdo e forma reacionários, produção de fadiga dos sentidos, compulsão pelo excesso e incapacidade de mínima concentração, mas também – e uma coisa está irmanada com a outra – das tendências autoritárias do cenário atual. Não há autocracia sem que haja heteronomia, de maneira que a infantilização é um requisito antipolítico de reforço das lideranças demagógicas. Se elas forem também sucessos nas redes sociais, então o circo regressivo está mais que armado. Neste centenário do dia das crianças, criado por Arthur Bernardes em 12 de novembro de 1924, não temos tanto a comemorar, mas, podemos nos lembrar da importância de sermos adultos.

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