A África na astronomia e Educação: algumas percepções

Marcos Borges dos Santos Júnior

Ao enunciar as contribuições do continente africano acerca da difusão epistêmica e “civilizatória” no globo terrestre, é possível não atentar-se perante a produção de múltiplos conhecimentos e saberes direcionados em determinadas áreas (seja pelo apagamento histórico ou não alcance das informações) como o caso da Astronomia – a ciência que estuda a composição, formação e fenômenos do Universo. Ausentando-se da “ótica” Ocidental em designar a Grécia como criadora da “ciência” e/ou filosofia, já que esta é uma disputa de legitimação/dominação na orientação epistemológica do planeta Terra (NOGUERA, 2014), tal ponto não difere da Astronomia(1), então neste momento será abordado outra percepção, um lócus cosmológico de “ser” e “estar” no mundo que produz formas existenciais a partir do Universo. Assim evocasse o povo Dogon.

Uma pergunta de imediato poderá surgir “Mas quem é o povo Dogon?” De antemão digo que são habitantes da África Ocidental, mais especificamente na região das Falésias de Bandiagara “na parte sudoeste da bacia do rio Níger, em território da atual República do Mali, na África Ocidental” (LOPES; SIMAS, 2021, p. 86). Para este povo, com base nos elementos encontrados no Universo, especialmente com o “ovo do universo” – a anã branca Sirius B(2), como a astronomia “moderna” conhece –, vieram tecendo uma rede complexa de conhecimentos e saberes que orientaram a interpretação da criação do mundo e seu continuum existencial. Conforme Elisa Larkin Nascimento (2008, p. 42) explicita

O calendário de festas sagradas de sua tradição religiosa, de mais de setecentos anos, define-se com referência a esse satélite de Sirius que a astronomia ocidental só conseguiu observar em 1862. Os dogon desenhavam, com exata precisão, a órbita elíptica em relação a Sirius. Denominaram o satélite PoTolo e projetaram sua trajetória até o ano de 1990, em desenhos que conferem precisamente com os da astronomia moderna. Conhecedores de 86 elementos fundamentais [ou aproximadamente 80, segundo Dieterlen e Griaule, 1950], os dogon souberam identificar as propriedades do material de que o satélite é composto e chamavam-no sagala. A descrição dos sábios tradicionais destaca, sobretudo sua densidade: um material tão pesado que todos os homens da Terra não poderiam levantá-lo. Efetivamente, como anã branca (a primeira identificada pela ciência moderna), Sirius B tem altíssima densidade.

Esta afirmativa traz alguns questionamentos no que se refere às técnicas e tecnologias utilizadas para tal constructo epistêmico, entretanto a principal abstração no atual momento é a “precisão” astrofísica com o alinhamento vivencial do povo Dogon, isto é, a constituição da “cultura, sociedade e religião”(3) pelas influências astronômicas. Não é a princípio o conhecimento manifestado no dia a dia, mas um axioma fincado através do “poder e força” da comunicação/existência em que reverbera uma percepção de ser/estar no mundo. Tanto é que esta percepção uno/duo (a interioridade existencial em constante diálogo com a exterioridade cosmológica) do “ser”(4)  foi aprofundado nos estudos por Marcel Griaule e Germaine Dieterlen (1950) e reconhecido pela UNESCO como um dos mais bem preservados (LOPES; SIMAS, 2021).

A partir de tal contexto é possível extrair desta percepção um diálogo entre a formação do povo Dogon com a Educação brasileira, não direcionado para o pragmatismo conteudista que se orienta por uma produtividade econômica ou esvaziada de pulsões constituidoras de sua origem, mas sim no deslocamento do “Eu” para o contato com “Outro”, isto é, uma abertura afetiva de “ser”, capaz de conceber outras percepções que estão além da racionalidade conhecida, ou melhor dizendo, uma abertura pro sensível (SODRÉ, 2016). E tal abertura se promove pelo constante contato epistemológico pluriversal, na quebra de paradigmas produzidos pela educação e no combate ao racismo.

 Para finalizar deixo a seguinte citação do astrofísico Neil deGrasse Tyson e do astrônomo Donald Goldsmith (2015, p. 25) que similarmente ao povo Dogon, aparentemente compreenderam a unicidade constituidora entre “ser” e “universo vivido”.

Sim, o universo teve um início. Sim, o universo continua a evoluir. E sim, cada um dos átomos de nossos corpos pode se rastreado até o big bang e as fornalhas termonucleares dentro das estrelas de massa elevada. Não estamos simplesmente no universo, somos parte dele. Nascemos a partir dele. Poder-se-ia até dizer que o universo nos tornou capazes de imaginá-lo, aqui em nosso pequeno canto do cosmos. E apenas começamos a fazê-lo (TYSON; GOLDSMITH, 2015, p. 25).

 

Notas 
(1) Isto reverbera, por exemplo, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ao divulgar a história da Astronomia na internet (s/d), em que pondera o ápice da “ciência antiga” na Grécia enquanto o Egito (Kemet) era “visto” como “rudimentar”, assim indo na contramão de estudos sobre a avançada tecnologia, técnica e formas de vida no Continente Africano da antiguidade como aponta Eliza Larkin Nascimento (2008) ou em outras alternativas (passiveis de um debate franco) na constituição da história da Grécia e Egito (Kemet) como explícita o falecido (1894 – 1954) George Granville Monah James (2022).

(2)  Resumidamente, conforme a estrela explode, mas não gera energia suficiente para produzir uma “supernova”, o que sobra é um núcleo extremamente denso, significativamente de tamanho reduzido, com pequeno brilho e rodeada por uma nebulosa planetária, isto é, uma “anã branca”.

(3)  Tais conceitos de “cultura, sociedade e religião” (GIDDENS; SUTTON, 2017) são recortes diluídos advindos das abstrações Ocidentais/Europeias que tentam abarcar a dialógica entre “ser” e “mundo vivido”.

(4) Vale ressaltar que o povo Dogon também desenvolveu conhecimentos sobre o sistema solar, a estrutura espiral da Via Láctea – nome como é chamado a galáxia que vivemos –, as luas de Júpiter e inclusive os anéis de saturno, cujo nos moldes contemporâneos é atribuído a “descoberta” ao falecido (1564 – 1642) Galileu Galilei (NASCIMENTO, 2008).

 

Para saber mais
Felipe. História da Astronomia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, s/d. Acesse aqui.

GIDDENS, Anthony; SUTTON, Philip W. Conceitos essenciais da sociologia. Traduzido por Claudia Freire. 2ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

Griaule Marcel, Dieterlen Germaine. Un système soudanais de Si. Acesse aqui.

JAMES. George Granville Monah. Legado roubado: a filosofia Grega é a filosofia egípcia roubada. Tradução de Wanessa A.S.P Yano. São Paulo: Editora Ananse, 2022.

LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias africanas: uma introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

NASCIMENTO, Eliza Larkin. Sanfoka: significado e intenções. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. p. 29 – 54.

SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. 2ª ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016.

TYSON, Neil deGrasse; GOLDSMITH, Donald. Origens: catorze bilhões de anos de evolução cósmica. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Planeta do Brasil, 2015.


Imagem de destaque: Galeria de imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *