Trapézio ou Trapézio?

Thiago Rosado

Era uma manhã de um dia qualquer, eu tinha talvez 7 ou 8 anos, estava na minha casa na roça lá na grota do Belém, zona rural de São Domingos das Dores. Entre muitos trabalhos nos cafezais, eu ia para escola e eventualmente fazia meu dever de casa. Lembro que, nesse dia, eu estava tranquilo com o caderno na mão e meu avô estava vendo TV no sofá, acho que assistindo Globo Rural. Uma das questões que me apareceu no caderno foi sobre geometria. Nessa questão, eu tinha que desenhar os formatos geométricos no meu caderno de acordo com cada enunciado. Eis que surge o enunciado: “desenhe um trapézio”. Tentei lembrar como era um trapézio e não conseguia, levei o caderno até o sofá e chamei meu avô:

– Oh Vô!!

Ele me respondeu com sua piadinha manjada, mas sempre afetuosa.

– Aonde?.

Após a brincadeira na qual eu sempre caía, pedi meu avô que desenhasse um trapézio para mim, pois eu não sabia como era. Ele pegou meu caderno e desenhou a seguinte figura:

 

Eu fiquei intrigado, me parecia tão descabido esse desenho, tão errado, pois eu tinha certeza que desenhos geométricos tinham todas suas linhas conectadas umas nas outras sem abertura para nada, era sempre uma figura fechada. Questionei meu avô e ele disse com toda certeza que aquilo era um trapézio. Eu peguei meu caderno, me retirei com desconfiança e, assim que ele não estava mais olhando, eu apaguei o desenho e pensei que meu avô não fazia ideia do que ele estava desenhando. Eu tinha 7 anos e era como se pela primeira vez eu tivesse presenciado um ser humano adulto fazendo algo sem a menor lógica, tendo como referência o que eu estava aprendendo na escola. Anos depois, já adulto, eu fui a um circo e tal surpresa eu tive quando vi um trapezista apresentar seu número e ver o trapézio que meu avô havia desenhado anos antes.

Sempre me vem essa história na cabeça quando eu penso sobre o trânsito de informações e conhecimentos criados e estruturados em um lugar para outro, da qual não necessariamente partilha dos signos, língua e linguagem deste lugar. Como a escola diante de pessoas não escolarizadas, que foi o caso do trapézio, da qual a Escola pedia de forma pragmática uma coisa e meu avô, em seus saberes, trouxe uma resposta válida para o enunciado, mas que não cabia naquele contexto criado pela Escola.

Não por acaso, eu saí lá de onde eu morava na grota do Belém, com uma população de menos de 4 mil habitantes, para ir morar na região metropolitana de Belo Horizonte com objetivo de ganhar a vida, estudar, ter um bom emprego e uma carreira de sucesso (coitada da minha mãe quando recebeu a notícia que seu filho escolheu fazer teatro). 

Com frequência, quando vou visitar minha vó na roça onde morei até meus 16 anos, caminho pelos lugares onde eu vivi quando era criança e me pergunto do porquê eu ter ido embora pra BH. Essa pergunta sempre precede a porquê eu não volto? Ou porque não consigo/quero voltar?

E mais recentemente nasceram novas perguntas: o que eu faço com minha pesquisa em educação? Para que presta essa pesquisa? A quem presta?

O que tenho pesquisado e criado de conhecimento se assemelha ao trapézio geométrico, ou ao trapézio do circo? Digo, quais responsabilidades são minhas quando me implico em fazer uma pesquisa de mestrado numa das maiores Universidades deste país? Como o outro é atravessado pelas coisas que eu faço ou deixo de fazer no âmbito da pesquisa?

Pensar/fazer/criar com ética, não só por mim, mas pelo meu avô, pelo seu saber, pelo lugar de onde eu vim e por trapézios, no plural.

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