Você lê o quê? Curtíssimo ensaio sobre o verbo ler

Júlio Cesar Machado

Em um Brasil em polvorosa política e pandêmica, vou fazer a provocação de uma mudança de eixo que, espero eu, meu leitor estranhe bastante, dado que estranhar é começar a aprender: você lê o quê?

Uma postura mais estrutural, radicalizará: lemos só um domínio isolado (um quadro, um texto com começo e fim, um monumento), os antigos saussureanos dirão: lemos só o que está escrito (palavras, frases de uma língua); uma postura mais filosófica, potencializará: lemos o mundo; uma postura mais discursiva proporá: lemos o efeito entre interlocutores; uma mais argumentativa, sofisticará: lemos o que foi dito sem dizer; uma postura mais social, qual seja, engajará: lemos os funcionamentos sociais; e para esculachar um pouco, às margens acadêmicas, algumas posturas anárquicas relutarão: quem está dizendo que eu devo ler?…

A lista do objeto de “nós lemos o quê” é escorregadia demais. A verdade é que ninguém conhece direito o objeto da leitura. Vou particularizar: e você, o que você lê? Vou provocar, porque prefiro respostas labirínticas, e prefiro, sobretudo, não entender a entender por completo (aliás, se algo é simples demais pra alguém, desconfio que esse alguém saiba o que diz saber). Vamos lá. Ler Machado de Assis te torna culto? Ler Beauvoir te torna feminista? Ler Marx te torna comunista? Ler WhatsApp te torna superficial? Agora me responda essa: se alguém, por algum acaso da rebeldia rotular, ler “Marx + Beauvoir + Trump, e ainda frequentar sua igreja ao fim de semana”: como será significado esse sujeito “sem lugar”? Como ele seria chamado nas sociedades que exigem que cada um deve “estar no seu quadrado”? Será que se pode, ou a sociedade permite, ou você se permite, ler e ter pontos de vistas tão estranhos entre si? 

O leitor percebe que estou sugerindo que o exercício do que chamamos “leitura” não está empobrecido na decodificação de símbolos, nem no gesto de “levantar bandeirinhas” de tal ou tal crença. Porque a leitura é um conceito rico, dado que ler não é se encontrar, é se perder. 

Ducrot, meu linguista preferido, nos ensina que ler é somar-se a muitas outras vozes, que estão na língua. Isso não é poético, mesmo que pareça. É o real da leitura: frequentamos cursos e escolas para nos perder em uma polifonia (lugar de várias vozes), porque perder-se é o início do achar-se. Proponho a avessa das luzes: lemos para desaprender, para então poder aprender.

Meu texto, decididamente, não é dirigido a quem “já sabe” (não me refiro aos que possuem leituras prévias, mas àqueles que carregam sacos de certezas). Quem “já sabe” não precisa ler. Doutra ponta, dirijo-me aos bons ignorantes desse mundo, meu grupo de preterição, dos amigos de Sócrates, cuja bandeira é “só sei que nada sei”. Eis a via metodológica eficaz para a percepção dos sentidos: não saber.

É claro que estou dando um sentido bem particular, talvez não escolar, para o verbo ler, de dificílima compreensão. Serei metafórico. A grande sacada de se ler, é que nós, patinhos feios no lago da leitura pronta, ou nós, águias no galinheiro das leituras impostas que nos impedem de voar, ou nós, tartarugas lentas e pensantes na pista das leituras muito retas das lebres que leem rápido demais, ou nós, coiotes teimosos que vivem atrás do Papa-Léguas dos sentidos intocáveis, já descobrimos que o mundo só pode existir por pelo menos dois caminhos: o mundo é a leitura pronta dos outros, ou o mundo é o que eu mesmo leio sobre os outros. Nesse imbricamento, me constituo.

Não são todos(as) que conseguem “se ler”, é fato. Ler a si mesmo leva tempo, reclama espelhos raros, forjados em frustrações e sucessos. Ler a si requer bons professores (aqueles do tipo que nos mostram a vida, escondidos por aí). Elucidemos com um exemplo que leio bem freireanamente: existe uma grande diferença entre a Cinderela leitora e a Cinderela não-leitora, no mesmo conto: a Cinderela oprimida, que não lê e não sabe ler sua vida escrava, e a Cinderela liberta, que conseguiu ler seu contexto, e venceu sua insegurança (quem não lê, é inseguro por natureza, porque não sabe significar a independência, sentido que os abastados apropriaram para si). Como quem lê nunca mais volta a ser o mesmo, a Cinderela-liberta leu sua opressão e ousou sair de sua interpretação inicial. Ela descobriu que, no grande baile dos sentidos dançantes, é ela quem escolhe seu par significante, e é ela quem protagoniza sua história. Afinal, final feliz é conseguir ler a si mesmo.

Este curto ensaio sobre o verbo ler evidencia que o eixo movente do mundo é o gesto de leitura, porque não existimos sem ler. Nem o historiador, nem o religioso, nem o político, nem ninguém, consegue “dizer o mundo” sem ler o mundo. O mundo não existe “ainda”, até que alguém o leia. E, para pôr fogo no parquinho dos donos da verdade, acrescento: não lemos para saber, lemos para desestabilizar o que pensávamos saber. E isso, caro leitor, não tem a ver com gostar de livros ou não. Gostar de gramática, ou não, porque ler é estrutura social por natureza: as comunidades ribeirinhas não precisam saber ler para ler quanto direito lhes foram tirados, na história do Brasil. Os quilombolas não precisam ser alfabetizados para se saberem lidos, postos à margem de outros povos. Os indígenas não precisam saber a gramática normativa para lerem a rigorosa mão jurídica que se lhes pesam, de modo bem desigual.

Fato é que não nos sabemos: somos interpretação. Podemos ser a versão de nossa própria interpretação, ou aceitar-se já-lidos e já sabidos pelos domesticadores de sentidos – os donos da verdade que “já sabem” você.

Proponho terminar pelas leituras (as viagens) do pequeno Príncipe (um dos meus símbolos de leitor maduro): por que visitar tantos planetas? Por que estranhar cada um deles? Por que não se encaixar em nenhum deles? Por que sentir-se “sem lugar” em uma miríade cultural? Justamente porque ler é pagar o preço do deslocamento social. E se a leitura é constituinte de nosso ser, questionar nosso lugar, família, trabalho, partidos e crenças, é visitar vários mundos, vários planetas, para enfim concluir-se “eu” na diferença com o “outro”, bem bakhtinianamente. Copo vazio que somos, enchemo-nos de leitura a cada dia, e a cada dia um mundo novo se nos constrói.

O principezinho, leitor de maturidade, ensina que a vida de quem não lê está fadada a um único mundo, repetitivo, previsível, e “já sabido”. Aos leitores, pelo contrário, se lhes reservam muitos mundos a visitar, sem nunca poder retornar ao anterior. A expectativa é o quinhão maior do leitor, que nunca repete o mesmo pôr do sol.

Lemos, somos lidos, e fazemos ler: ler é decidir-se protagonista ou coadjuvante em sociedades que nos ditam o que somos, em grupos que nos dão leitura pronta de nós mesmos. Neste contexto, só quem se lê pode ter voz por sobre quem nos lê.


Imagem de destaque: morhamedufmg/Pixabay

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