O sangue seco na varanda denunciava a violência. Fazia o papel da crônica e anunciava a morte. Dias depois, o porão da casa, que já abrigara bicicletas, caixas com bichos de pelúcia e bonecas, ferramentas e bolas coloridas, foi visitado pelos peritos do Instituto Médico Legal. O corpo do desconhecido, já em decomposição, era só mais um indício que a vida da casa chegara ao fim.
Sim, as paredes de madeira, sustentadas pelo porão de tijolos, abrigaram quatro gerações daquela família. Os avós, filhos de imigrantes italianos, finalmente haviam deixado a lida nas fazendas de café do oeste paulista, e, em meados do século XX, migraram, mais uma vez. A vida na cidade, a busca por melhores oportunidades para os filhos, a casa própria. Casa de pobre! Pequena, o banheiro para o lado de fora, o fogão à lenha, o quintal com árvores e galinhas… O porão de tijolos compensava o terreno acidentado e trazia o assoalho ao nível da rua.
A avó pouco aproveitou da casa. Diz-se que a tristeza a levou para a cama. Visitou a neta recém nascida no hospital e, logo depois, a melancolia, que já vinha de longa data, a prendeu ao leito. Dali saiu onze anos depois. Morreu no dia do aniversário do filho caçula. Me lembro das visitas aos avós. A criança que fui nem sempre se agradava deste movimento. A casa era triste, o contato com os avós, formal. O avô falava em dialeto italiano com o filho, seu português era precário apesar de ter nascido em terras brasileiras. Mas sempre havia as rosquinhas. Guardadas na lata de alumínio – ou de outro metal qualquer – eram durinhas e tinham um formato curioso… Sequinhas, se esfarelavam no contato com os dentes, se espalhavam pela roupa e pelo chão…. Deliciosas sempre!
Também havia o cachorro. Imponente, estava sempre lá, deitado em cima da mesa de madeira na sala. A argila na qual foi moldado era suave e macia ao toque das mãos. E havia o quadro, A Santa Ceia, na moldura ovalada, pendurado na parede, entre os dois quartos. O filho, nas visitas que fazia, usava a pinça para libertar, cuidadosamente, os olhos da mãe dos cílios encravados. A menina que fui, nunca entendeu isso muito bem… Os cabelos da avó estavam sempre presos, o olhar sempre vazio… Já não carregavam as memórias da vida difícil?
E foi assim. Após a morte da avó, o filho caçula e a família se mudaram para a casa com porão. Compraram as frações da humilde herança que cabiam aos demais filhos e filhas. A casa, pouco a pouco, ganhou novos ares. O fogão à lenha foi derrubado, um novo banheiro foi construído, o telhado foi forrado… Depois, uma nova cozinha… O quintal foi cimentado… O pai trabalhava junto aos pedreiros – e muitas vezes, sozinho mesmo – nestes pequenos “luxos” para a família. Deixava a farda da corporação nas horas de folga e vestia novamente a pele do pintor de paredes e pedreiro que usou por um bom tempo entre a catação de café na fazenda Cascatinha e a admissão para a vida de caserna.
O quarto de costuras da mãe foi transferido da casa para um novo cômodo no quintal. Era lá que ela recebia as freguesas entre fitas métricas, alfinetes, agulhas, linhas e rendas. Um universo de texturas, cores e formas ocupava o “quartinho”. Bailes, casamentos, aniversários, formaturas foram testemunhas da beleza que ganhava vida pelas mãos da mãe. Maior do que os quartos da casa, sabe-se lá porque, o diminutivo o qualificou desde o primeiro tijolo.
Balanços de madeira sustentados por correntes foram feitos pelo pai e dispostos no quintal. Tudo era muito simples. Marcado por precariedades que o dicionário não descreve e que a memória prefere calar. O avô presenciou muitas destas mudanças enquanto viveu com os novos moradores: o filho, a nora e as netas. Alguns anos depois, mudou-se para a casa de uma das filhas. Morreu enquanto dormia. O cheiro do fumo de rolo que carregava nos bolsos da calça ainda impregna as lembranças da menina sobre ele.
Além dos brinquedos que povoavam o porão, das crianças no quintal, dos balanços no alpendre, a casa conheceu o bebê que nela foi concebido e uma gama de animaizinhos que acompanharam o crescimento das crianças. Eram porquinhos da Índia, gatos, cachorros… Estes últimos, invariavelmente eram “fox paulistinhas”. De porte médio, destemidos e carinhosos, alertavam a chegada de estranhos ao portão indo-e-vindo pelo corredor lateral, conector de espaços, até que alguém da casa atendesse a porta.
O reinado dos “paulistinhas” foi “quebrado” por Miloca. Uma basset, de pelagem amarronzada e brilhante. Chegou na casa ainda filhotinho, um presente para o pai, segundo as filhas mais novas. As crianças já não existiam mais. Haviam se transformado em mulheres. E essas mulheres-crianças amaram Mila (a nossa Miloca) como nos tempos de infância. T-e-m-p-e-r-a-m-e-n-t-a-l.
Assim era Mila. Carinhos e cafunés eram facilmente desprezados mediante algum contragosto. Mantinha-se virada, dando as costas e ignorando s-o-l-e-n-e-m-e-n-t-e a quem quer que lhe houvesse chamado a atenção. Compreendia o mais estranho dos comandos: “Mila, saia do sol, está muito quente, vá para a sombra!”, dizíamos do alto da escada, paradas na porta da cozinha. Rapidamente ela se levantava, saía do sol e deitava-se novamente, na sombra!!! Nunca entendemos isso!!!
A casa conheceu a bisneta. Já haviam muitos outros e outras na família. Mas, naquela casa, ela foi a primeira. Novos e antigos brinquedos ocuparam o quintal e o porão. Os balanços voltaram a subir e a descer, levando e trazendo o riso infantil, a brisa no rosto, a magia do voo sem asas… O banho de mangueira, a piscina de plástico, o banho de sol no quintal. A casa presenciou os encontros. Os churrascos, os natais, os novos anos, os aniversários, os casamentos…. E os divórcios também…. Presenciou os estudos, as formaturas, os namoros, o ir e vir das amizades e dos vizinhos, as viagens… Discreta, assistiu a tudo silenciosamente. Os risos e os prantos deixaram sulcos nas madeiras transmutadas em paredes. Conformada, compreendeu quando, após tanta vida, esvaziou-se.
A casa mantinha o corredor lateral protegido do sol. No verão, era agradável passar por lá, no inverno, nem tanto. Desembocava no quintal que esbanjava luz e calor. Era ali, exatamente naquele encontro entre luz e sombra que a menina se deitava. Parte do corpo na sombra, pernas ao sol, aproveitava o melhor dos dois “mundos”. De costas, no chão de cimento, sonhava observando as nuvens “empurradas” pelo vento. Inesquecível sensação de paz. Mas a varanda… O sangue… O porão… O corpo… As memórias escancaradas… As lágrimas grossas e incontidas pelo rosto afora… O desabafo final.
Imagem de Destaque: psaudio/Pixabay